A voz



Aplauso.

Pisa o palco engasgada por palavras que querem sair. Elas sabem que estão no palco e querem-se mostrar. Atropelam-se para que possam sair, querem todas ver as luzes, mostrarem-se. Primeiro eu, diz uma para a outra, empurram-se, tentando passar à frente. Não se sabe quanto tempo lhes resta e querem sair. E eis que o estrafego é tanto que as luzes se apagam.

Acabou-se! É a palavra que ganha velocidade e sai à frente das outras todas. Fica o silêncio no espaço. As palavras desaparecem, libertando o engasgo. E finalmente respira num vazio tão cheio e apaziguador. Foram apenas uns segundos, mas com sabor a eternidade, de um preenchimento tão acolhedor.

As luzes acendem novamente. O espetáculo tem de continuar. Mas agora há o vazio, e não há nada para dizer. Há a presença, as presenças e o bailado está pronto para começar. Há a certeza de que os instrumentos necessários estão presentes para orquestrar o concerto. Está disponível, presente no momento para a melodia sair e a magia acontecer.

E as palavras surgem de outro espaço e tempo coordenadas no compasso certo, dançando umas com as outras numa harmonia musical penetrante. E a voz que a transmite cumpre o papel que lhe é pedido. Não importa a quem se dirige, que efeitos vai repercutir, apenas que se manifesta, por respeito a uma vontade que é maior do que ela.

Não quer aplausos. Não importa. Reconhece a sua voz, é tudo o que importa, pois ao reconhecê-la deixa que se expresse, faz-lhe a vontade. Recorda-se, valida-a como sua e permite que crie, que construa. Não quer chegar a lugar algum, pois o lugar onde se deu já passou, ficou no momentum do espaço e do tempo onde se manifestou. Deixou de lhe pertencer, se é que, em algum momento lhe pertenceu.

Se nalgum momento teve a pretensão de agarrar as palavras e a voz, e sim teve, sentiu como se tivesse entrado num carrossel a alta velocidade sem stop. Uma roda ilusória cheia de gaveta flutuantes com palavras armazenadas, catalogadas por ordem alfabética e categorias. Várias cordas vocais, com diferentes timbres armazenadas em caixas e caixinhas de vários tamanhos. E a roda ia girando sempre com várias cores e tonalidades. Às vezes ficava tonta de tantas voltas e trocava as gavetas e as caixas, outras ficava indecisa, não sabia o que escolher.

Até que percebeu que é uma ilusão tanto armazenamento e começou a limpar as gavetas, as caixas, deixando-as cada vez mais vazias. Percebeu que não precisava delas, e que estavam a ocupar muito  espaço dentro dela. Entrou em crise. Vazar estas gavetas e caixas não era fácil, lidar com o vazio era desconfortável. Foi preciso morrer várias vezes, fazer luto. Perder para se transformar. Para no silêncio e no vazio poder voltar a criar e renascer transformada.

Silêncio que a voz quer manifestar-se e a palavra quer criar.

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