O rapaz de pé descalço e a sua viola

Hoje saí de casa com uma missão, apoiar quem precisava de ajuda, e lá me dirigi a caminho para me disponibilizar e para aceitar o não que dali proviera. Assim é, podemos prestar auxílio a quem nos grita por ajuda, ainda que silenciosamente, estar lá e também partir quando a pessoa não tem a vontade de se ajudar a si mesma. E assim prossigo o meu caminho sozinha cumprindo o plano a que me tinha proposto, praia com ela. Muito bem acompanhada de mim, até me apaixonei por uns vestidos e fui às compras. O mar receberá-me de braços abertos na temperatura ideal. Aquelas tardes perfeitas em que não há tempo, apenas presente em cada passo, saboreando.

E eis que quando me preparo para sair, vou levantar dinheiro ao multibanco e deparo-me no caminho com um rapaz que seguia à minha frente, pé descalço, sujo, com a viola às costas, ainda jovem transmitia um ar de perdido. E não é que foi para o multibanco para onde me dirigia... e ali estava ele a tentar levantar dinheiro sem sucesso e consternado com a situação. E quando me deu a vez pediu-me umas moedas para apanhar o autocarro. E eu, que não as tinha, respondi-lhe muito espontaneamente que ia para Faro e que lhe dava boleia. O Samuel que falava espanhol e francês trazia no corpo umas calças de ganga encardidas e rotas, todo ele um cheiro nauseabundo. E sem hesitar disponibilizei-me. A cigana à qual comprei os vestidos observava o rapaz que se manteve por perto enquanto me aguardava. Comentou que o rapaz deveria ser louco ou drogado que estava na praia desde ontem. Eu disse que estava comigo e lhe daria boleia para Faro. Surpresa, ainda teve o instinto de proteção para comigo, de “vê lá filha se o rapaz não te faz mal”. Pareceu-me inofensivo e segui o meu instinto de lhe dar boleia.

Um pouco perturbado, notava-se, mas a sua pureza também saltava à vista. De quem vive numa realidade diferente, mais abstrata, talvez. Ele ia sorrindo sozinho enquanto estávamos parados no trânsito. Perguntei-lhe do que ria. Ao que me respondeu, de um sonho contemplativo que tenho desde criança. Com raízes australianas, uma vida por França e Espanha, um viajante solitário, talvez incompreendido pelos seus. Percebi um pouco pelo relato confuso que me foi contanto que os pais separaram-se tinha ele 3 anos. O pai vivia em m Madrid, a companheira do pai tinha-lhe feito muito mal, então não o podia ver. A mãe encontra-se em França, mas foi muito difusa a relação com ela, falam-se de tempos em tempos. Chegara a Faro há 3 dias, tinha vindo de Espanha, viaja com a roupa no corpo e a sua viola de 2 cordas e bolsos vazios. Quer ir para o Norte, ver a natureza e quer madeira para esculpir.

Perguntei-lhe a idade, 29 anos. Partiu-me o coração ver alguém tão jovem, naquele estado, à deriva, sem tecto, sem comida. E por outro lado, a vontade de ir, de partir, de seguir. Tenho tudo o que preciso, nos bolsos, e apenas a roupa que visto e transporto a música comigo. Tão leve, mas com a mente tão cheia dos seus pensamentos, de uma realidade muito própria. Agradeceu-me a boleia com um aperto de mão, levando a minha mão à sua testa e depois a si mão ao coração. Queria que ficasse, para bebermos um sumo ou café. Disse-lhe que não e que certamente se iria cruzar com outra pessoa que lhe ia dar outra boleia.

E não é mesmo isso que somos? Viajantes passageiros que apanhamos boleia uns dos outros? Se por um lado me partiu  o coração ver o estado daquela pessoa, por outro lado também a invejei, no desprendimento, na leveza de seguir e de cumprir o que lhe vai na alma.

E sabe tão bem ver o outro para além das suas vestes sujas e fedorentas e perante outro Ser apenas ser. ❤️

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