Receber-te




Pedes-me que te escreva... sem promessas, apenas a cumprir o impulso do momento e permitir que as minhas mãos possam expressar-te por palavras.

Receber-te, receber... vai muito além do conceito que a palavra pretende transmitir, mas na quietude permito que toda a palavra me percorra e a palavra já não é mais palavra, mas vibração que abre e expande todas as células, todas as partes do ser e coloca-o à escuta. É render na permissividade que a tudo possa entrar, deixar acontecer. E observo sem intervir, e reparo nos ciclos, nas transformações, na palavra que agora toma lugar e agradeço o ciclo que termina. Resistência mostrou-se para que a olhasse soube todas as formas,  para que pudesse soltar, para que me desse conta do que estava preso, do que estava a pedir atenção, para que me desse conta da  agitação interna que me fazia querer jogar tudo fora e limpar, o desassossego de estar a fazer uma coisa e depois largar e fazer outra, os bichos de carpinteiro que me andavam a provocar movimento. E nessa observação e agitação buscava também alimento nas formas, deixa-me ouvir aquele e mais o outro e ler mais um pouco na ilusão de buscar um sustento que aquietasse as sensações internas. Mas ainda assim acolhia-a, permiti que percorresse o seu curso, que me revelasse.O caminho é sempre útil, o que se consome também, seja para descartar ou validar o que se sente mas ainda não se entende com a mente pequena que procura sempre entendimentos. E aí fecha-se também ao que só consegue traduzir e interpretar.

E para receber tenho de largar expetativas, conceitos, formas, permitir-me estar no não saber, nesse espaço vazio. Quando comecei a acolher a agitação de todo o movimento desconhecido comecei a receber-te. Tu pedias que te encontrasse e eu arranjava ocupações para me distrair de ti.  E há um momento que o chamado é mais forte e rendo-me a ouvir-te. Em mim moras tu e preciso de assumir-te. Eu vejo-te através da minha pele, dos mensageiros que encontro no caminho, do amor que dou e recebo.  E, por vezes ando no jogo do faz de conta, de ora vejo ora não vejo. Deixa-me lá esconder-me mais um pouco para que não me vejam.  E tu arranjas sempre forma de me encontrar, de me empurrar para fora do ninho para que possa contagiar e ser contagiada. E que bons contágios são os que recebo.

As pérolas que colocas no caminho, os poemas que pintas em telas coloridas em forma de pessoas, animais, plantas, alimento, som, palavras, música... E digo-te SIM. E como as formas vão mudando como um caleidoscópio em movimento. Assim é a ilusão da forma e da cor, os espectros que nos dão "uma consistência de qualquer coisa". No outro dia comentava com uma amiga, achamos que temos os pés na terra, mas na verdade estamos a flutuar no espaço. Que imagem tão gira, a gravidade dá-nos a sensação que estamos aterrados e parados, mas estamos em movimento constante dentro e fora.

Questionar faz-nos perceber o quão pequenos somos numa grandeza que desconhecemos e esta incerteza tem tanto de bom, faz-nos navegar num profundo encontro. E navego para dentro das paredes da minha pele e ela mostra-me que não há fronteiras, que o espaço é aberto. As reuniões de condóminos existem em cada parte, mantendo o sistema, que se interliga a outros sistemas, numa cadeia interminável de condóminos.

E para que te veja, te sinta, te escute disponibilizo-me, presto-te atenção.

E o deserto aproxima-se, começo a sentir o vento que traz a areia e que me bate suavemente no rosto. Ele chama-me suavemente e aí reencontro-te na imensidão da reunião das pequenas partículas de areia que formam as dunas sempre em movimento, a mudarem a sua forma, a mudarem os caminhos, a apagarem o rasto dos caminhantes que por lá passam. E o céu está mais perto da terra, a reunião dos elementos, o silêncio, a quietude permitem que possa estar mais atenta, não há distrações, apenas a tua tela e eu.


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