O que sobra



O dia despertara-a cedo. Aliás arrancava-a da cama a uma velocidade estonteante. A formação já tinha começado, não ouvira o despertador, mas a colega de curso que se apercebera que ainda não tinha entrado no grupo dava-lhe um toque para o telemóvel. E enquanto lavava a cara e os dentes clicava no link para entrar na sala de formação online.

O dia começara assim de rompante, num fôlego. Mas desperta e com vontade de aprender, aí estava sentada na mesa a absorver novo professor e conteúdo. Bebendo batido acabado de fazer de banana e morangos e um café fresco. Como era uma sortuda poder estar no conforto do seu lar de camisa de dormir e roupão em formação.

E a questão do dia foi o que lhe Sobra?

A nossa estrutura está tão programada para o que falta, para o que se quer aperfeiçoar, para o que se quer alcançar e ter que tantas vezes passa despercebido o que já é, o que se tem. E aí perde-se a oportunidade de desfrutar o que é em cada momento.

E observar as vantagens deste contexto que lhe trazia novas oportunidades e faziam-na explorar novas possibilidades da sua casa, que passara a ser sala de formação, ginásio e também uma nova exploração dos objetos que compunham a decoração e dar-lhe novos significados. E ora estava na mesa a tirar notas da formação, ora sentada à janela a apanhar o ar fresco e a luz do sol, ora no sofá de pernas estiradas.

Podia dizer que lhe sobrava tempo? Também, porque de repente ganhara tempo, ao poupar deslocações, ao ter tudo concentrado em casa, mas era mais profundo do que isso.

Tinha-se a si mesma. Nada faltava. Tinha mobilidade, capacidade de sentir, ver, ouvir, tocar, cheirar, saborear, pensar, refletir, reter memórias e fazer. E a cada momento sobrava-lhe energia que se renovava constantemente ativando mais vontade para continuar movendo-se e criar em cada gesto, palavra e ação. A criação era contínua, estava viva. E isso fazia-a criar em cada instante do mais simples ao mais complexo.

A tarde era de crianças, com crianças. Explorando a terra, a mexer na terra. E aí, nesse encontro observava a fertilidade daquela terra. Os legumes a crescerem, a serem colhidos e as sementes a ser plantadas. A terra a ser cuidada, a terra a gerar vida. Porque sobrava restava-lhe germinar e crescer. E quanto mais nela se investia, mais ideias vinham para serem executadas. Assim é a criatividade. Quanto mais se cria atividade mais vem. E as crianças corriam, ora apanhavam fruta num instante, para logo a seguir largar e apanhar pedrinhas, para depois perseguirem as formigas e logo a seguir andar de balouço, e a seguir fazer o barro com a terra debaixo dos pés. E se objetos começaram a ganhar forma, logo a seguir o barro já estava a decorar árvores. E os adultos à volta também se entusiasmaram para brincar com o barro. A terra chama-nos e a criança que há em nós também quer brincar. E entre banhos na piscina improvisada no meio do SPA da plantação de milho e girassóis as crianças riam e brincavam para logo a seguir irem dar de comer às galinhas e visitarem os pintainhos acabadinhos de nascer. E olhamos para a vida no campo e com tanto para cuidar conseguimos ter um vislumbre da abundância. 

Está sempre a gerar vida.

E se natureza somos, o mesmo passa dentro e fora de nós. Será que te dás conta. Que te sobra tanta criatividade, tanta energia, tanta capacidade para criar e fazer. Desde o simples ao complexo. Tudo conta. Estás sempre a gerar o novo.

Observa o que te sobra. E ela que tinha começado o dia a aprender, deu-se o tempo para dormir uma sesta, para fazer uma máquina de roupa, para a tarde com o sobrinho, para ainda apanhar o final de outra formação, para pôr a conversa em dia com as amigas e apesar do corpo se sentir cansado, a energia essa, sobrava-lhe, estava revitalizada. De coração cheio, entusiasmada, feliz. Podia não ter feito tudo o que era suposto, mas isso não importava, seguiu as propostas que o dia apresentou e desfrutou-as com a sua presença.

Sobra-lhe a vontade de viver, com tudo o que implica.

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