Escutar...

O novo dia acabou de nascer. O despertador toca para que o corpo se lembre que tem de acordar, erguer-se e levantar-se para desbravar as surpresas que o dia tem guardado logo ali.

O duche, a roupinha lavada, o sumo de laranja e pronta para abrir a porta para mais uma viagem.A estrada espera-me. Bom dia! Bom dia! Cheiro a café, o burburinho dos pés na calçada, os carros que circulam na sua azáfama. O cão que ladra, a buzina daquele carro que não prestou atenção ao sinal. Está verde! Avança!

Paisagens e mais paisagens... o tempo que passa, que acelera e parece não ser suficiente. Não vou chegar a horas. ai que não vou chegar a horas. Mas o tempo é sempre o tempo certo, por mais incerto que possa parecer. Chegámos. Finalmente, chegámos ao destino. A entrevista estava marcada... e ainda esperámos pelo tempo... que o tempo fosse o tempo certo.

O sol batia forte, luminoso e aquecia o ar frio que batia na cara. Quente, confortava o corpo sentado na pedra gelada do degrau. No tempo congelado da espera, assistia-se à vida que por ali passava. Imensa. O choro da criança que de mão dada pela mãe vinha contrariada. A mãe aflita usando da sua persuasão para tentar calar a criança, "Olha está tudo a olhar para ti. Já és um menino grande para estares a chorar. Cala-te, por favor!" Em simultâneo mulheres enérgicas passavam com sacos e mais sacos de mantimentos para as suas viaturas de serviço. No ar estava um cheiro delicioso a legumes cozinhados e a frango talvez... odores que despertaram para a barriguinha e lembraram que a hora de almoço se aproximava a passos largos.

Gente e mais gente atraída pelos odores e pela hora que o relógio anunciava iam-se aproximando e num entra e sai, homens e mulheres de várias idades, cores e etnias foram entrando e saindo com sacos cheios e caras mais satisfeitas :-D

Aqueles que mais se demoravam iam encetando conversações sobre a vida, o emprego, o governo, o dinheiro e a saúde. Conversas simples, muito sábias e bem-humoradas, apesar da angústia e tristeza que rondava nos rostos destas gentes que almejam uma vida com melhores condições, fora da precariedade de contar tostões. Todos se cumprimentavam entre si com um enérgico BOM DIA, ainda que pela passagem se notasse que não se conheciam propriamente, talvez se cruzassem dia sim dia não, naquelas andanças de "o quase que almoçamos juntos", pelo menos o mesmo prato devemos comer, falta apenas a mesma mesa. Esta solidariedade tácita que se sentia nos rostos de cada um é de uma generosidade imensa, estamos todos no mesmo barco, de mãos dadas. Entre dois homens que ali estavam a fumar o seu cigarro, discutia-se trabalho e troca de contactos. Experimenta o Raul, já trabalhei com ele. Agora está a pintar a casa de uma tia, mas talvez, quando ele tenha mais trabalho possas falar com ele. E na despedida, marmita cheia, sorriso aberto, há um aceno final. Fica bem... e não te esqueças se souberes de alguma coisa, avisa, grita aquele que estava à procura de trabalho.

E eu pacientemente sentada ao sol ia assistindo a tudo isto. Entretanto chega-me uma mulher de forma redonda, parecia uma daquelas bonecas russas, lenço preto, saia preta comprida, pele morena queimada do sol e umas bochechas fofas e grandes, com o seu rapazote atrás, dos seus 12 anos, talvez fosse neto ou sobrinho, e ela abrindo caminho com sua firmeza e peso gritava,anda daí, despacha-te, com um vozeirão cantado e alto que fazia estremecer o espaço. De repente pára perto de mim, diz Bom dia com uma voz doce, e pergunta-me cordialmente "como é que a menina está, tudo bem?" E segue o seu caminho com a sua presença imponente.

Os rapazes bem-dispostos que ali estavam continuavam a circular o espaço metendo conversa com quem ali se encontrava, metendo-se até com os mais taciturnos, parecia que, queriam dar boa disposição a toda a gente, apesar da fome e da ansiedade pela comida que tardava a chegar, e as irritações de, "aquela outra senhora chegou depois e já saiu e nós aqui estamos há 1 hora e nunca mais chega a nossa comida". Tenho de ir reclamar, exclamava um, dizendo que já não era a primeira vez que tinha de marcar a sua posição junto da equipa técnica.

Entretanto, lá continuava em cima do muro a comer a sua romã e abanar a perninha. Romã comida, abre o apetite para o cigarrinho e lá vem uma maneira de se meter com a taciturna que ali estava sozinha a um canto "Arranjas-me lume?". Troca de sorrisos e agradecimentos, o espírito amoroso sentia-se nos pequenos gestos. Eu divertidissima a assistir aos diálogos e conversa entre-cruzadas entre os que estavam, os que chegavam e partiam. Pensando eu que estava completamente despercebida como espectadora, também os meus pequenos gestos estavam a ser observados. Fumei o último cigarro e coloquei o maço vazio dentro da mala. Pois o rapaz que estava de lado para mim, como se me conhecesse, diz-me está vazio o maço, dá-me que eu deito-o fora. A última gota de água sorvida da minha garrafa ainda a posar, leva a que o outro rapaz da romã me diga, queres água? Vou ali encher à torneira.

O que é certo é que pelas circunstâncias do espaço envolvente era como se eu estivesse integrada no grupo deles, e como não estava de ouvidos tapados era impossível não participar. As expressões que o meu rosto deixava escapar provavelmente denunciavam a minha participação atenta, deliciada com as aventuras de cada um. E a senhora de preto quando estava já de saída ainda me ajudou a limpar as calças que ficaram brancas do degrau de pedra onde estive sentada.

Às vezes nós pensamos que temos pouco... que o que temos nunca é suficiente. Somos ambiciosos e sempre carentes por mais.Quando aqueles que muitas vezes estão no limiar da pobreza e que têm de recorrer a instituições de caridade demonstram uma abundância enorme entre si, pelo agradecimento que demonstram pela generosidade dos que os ajudam, pela humildade e capacidade de ajudar o seu semelhante. E uma vontade enorme de trabalhar, de se sentirem úteis e prestáveis.

Saí deste dia certamente mais rica :-D

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