Tempo



Mais um dia que acorda. Sim mais um dia. Que nada tem de diferente e de igual. Parodoxo. O acordar é sempre o mais difícil. Para que terras do sono irá ela que não quer de lá sair. Não que tenha medo de encarar esta terra cá. Antes pelo contrário, adora-a de coração. Talvez dificuldade em decidir, por achar que não tem de decidir. Teimosa. Sem dúvida. Quer tudo e não quer nada e mantém-se no limbo.

Como sempre quando estabelece compromissos acorda antes do despertador, como se ele lhe pudesse fazer uma travessura e não tocar. Mas ainda assim, não resulta. É só mais cinco minutos, diz ela, de si para si. E quando finalmente desperta dessa ladainha, levanta-se de rompão e já só tem tempo para correr. Belo acordar. Todos os músculos despertam nessa azáfama, não fica nem um adormecido, é quase como se tomasse um belo banho de água gelada. Adora desafios. O seu maior desafio é com o tempo, enfrenta-o, luta com ele como se de um dragão se tratasse. Daqueles que cospem fogo e voam. Sabe que não pode viver sem ele, e isso também a conforta. É o tempo que a mantém ligada, que marca o ritmo.

Ao som de Phil Collins “can you feel the calm in the air, tonight all long”, foram as palavras que lhe voaram assim de repente pelo ar e tomaram forma neste papel virtual. Um cigarro que se esfumaça e que se consome a cada baforada, chega ao filtro e o fumo dispersa-se seguindo o seu curso. O meu amigo tempo é o maior criativo que ela conhece. A junção dos sons, as pausas, agora acelera, agora abranda confere melodias que faz o corpo e a alma dançar. O cão ladra lá fora diversificando a quantidade de sons que entra pela casa adentro. O pé bate no chão e todo o tronco acompanha a panóplia de musicalidade. Também as palavras dançam. Aquelas que bailam cá no cérebro à espera de saírem e criarem o seu próprio ritmo. Não são propriamente escolhidas, nem se buscam sinónimos para a escolha da palavra mais adequada e acertada. Apenas têm vida própria e escorrem espontaneamente, manifestando os sentimentos que lhe moram lá dentro. Nesse quarto escuro que se ilumina cada vez que expele e lhe dá ouvidos. E a porta vai-se abrindo, os tesouros vão saindo, assim que nem pérolas soltas e vão passear por aí. Não importa para onde vão, apenas a vontade que têm de ir passear. Ela apenas lhe pode fazer a vontade.

Às vezes reprime-as, numa tentativa vã de as controlar, de as avaliar, de as medir. E quando assim é, as palavras brincam com ela. Ora lhe saem a correr, num ritmo alucinante, quase não as consegue agarrar e sem aviso. Escolhem logo aquelas alturas em que não podem ser agarradas, exactamente para lhe mostrarem que tem vida própria. E ela tenta quase sempre agarrá-las. Quando está no carro e no Wc, em situações que ela está presa, as sacanas lembram-se a sair, exactamente para lhe mostrar. Estás a ver, nós também queremos liberdade. Outras vezes elas rejubilam-se por a vontade lhes ser feita. E saem felizes num mar sem fim. Outras zangam-se e não querem sair. Querem mimo, que Sela se reconcilie com elas.

Hoje acordou com a missão de se cumprir. Abraçou o tempo e reconciliou-se por hoje. Chegou a horas e inundou-lhe a alegria do dia cinzento. A chuva que lhe molhou o rosto e os cabelos cumprimentou-a. A música, as pessoas, as frases que leu. Hoje é dia de criação.

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