Celebro-te

Hoje sinto-me em ponto morto. Alguma coisa está a querer dizer-me adeus. Uma parte de mim morre, sem que eu nada possa fazer, apenas assistir.

Não é mau, nem é bom. Simplesmente é. Todos os meus sentidos estão estranhamente despertos. Não me apetece movimento, ainda que só o simples pensar implica em si movimento.
Estou, mas não estou. Recebo-te, sem que tenha pedido nada e dou-te como condição inalianável de ser.

As palavras têm vida própria, espalham-se sem que eu perceba as ligações que elas querem fazer entre si. Não há resultado. Nenhum jogo a ser pontuado. Nenhum lugar para onde ir, nem sítio nenhum para ficar.

E eu deixo-me ir, não como um barco à deriva, mas como a água que faz mover o barco, seguindo os ciclos, as marés.

O nascimento aproxima-se e tenho de me deixar morrer. Celebrar o meu enterro, para voltar a ser parida. Voltar a sentir o choque do embate, do me sentir despida e desprotegida neste solo árido, cheio de tudo e cheio de nada. Voltar a sentir, voltar a escutar e escutar-me. Metamorfoses constantes neste palco que é a vida. Um salto para um abismo. Não se sabe para onde se caminha, mas os passos continuam a ser dados quase como condição de respirar. Um salto constante para o desconhecido, como se de uma atração fatal se tratasse. Assim sou eu, ofegante, intensa, rebelde, criança, menina a consumir e a deixar-me consumir pela vida que tenho cá dentro e encontro lá fora. Só consigo dar-me ainda que o medo possa assolar-me as solas dos pés e tornar o meu andar mais coxo. Páro. E quando páro sinto. Sinto que sinto e que tudo em mim vibra. Também me assusta este ser estranho que encontro aqui, que se comove com a beleza que sente nela própria. Talvez falta se hábito em se reconhecer e em se mimar. Como és tão bonita, diz-lhe ela. E ela estranha,como se fosse mau, assumir esta verdade tão sincera, como se fosse demasiado narcisista pensar sequer isto, como se assumir isto pudesse dislumbrá-la e fechá-la no seu espelho mágico egoísta. Mas como ê que pode? Ela continua perdidamente a amar o mundo. A emocionar-se com tudo, a acreditar na bondade e na beleza. Ela acredita num mundo mágico de cooperação, de entrega e que as pessoas se movem pelo bem maior que nos une. Não que seja algo de tão fantástico e irreal, não que já não tenha apanhado com as patadas da mentira e da dor que os outros despertaram nela. Ela já sentiu esses gestos maus que a magoaram... Mas porque o fizeram? Que tristeza, que medos moveram o outro a ser. Assim tão gratuitamente? Pouco importa. Importa que a pessoa não é os gestos que tem a determinado momento. Queremos todos desesperadamente amar e ser amados, mas como não sabemos exactamente o como, vamos andando por aí às cabeçadas até acertar e muitas vezes sem desculpas nem com licenças. É mal, é bem? Quem sou eu para julgar. Eu que já tanto errei e vou continuar a errar amanhã, eu que já falhei e fracassei, quando foi o melhor que consegui fazer naquele momento. Sim nesse momento.

E ainda sim, acredito. Porque dou e já recebi e continuo a dar e a receber o melhor que cada pessoa me dá a todo o momento, por tudo o que respira e se move e me move. Acredito, não tenho porque não acreditar.

E hoje enterro-te e celebro-te para que a cada dia que nasça eu possa ressurgir sempre renovada e aceitar que hoje estou triste, amanhã alegre e que tudo é tão efémero e passageiro, mas também tão eterno, tão pleno, tão perfeito. No desequilíbrio volto a encontrar o meu centro.

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