Moro com uma estranha




Não sei quando chegou. Não bateu à porta. Simplesmente entrou e instalou-se de malas e bagagens. E foi ocupando todos os espaços. Preenchendo e colocando tudo do jeito dela. E eu impávida e serena, mantive-me a observá-la, sem nada dizer. A naturalidade com que se instalou, como se sempre tivesse habitado cá em casa. A ousadia deixava-me estupefacta, mas ainda assim sem reação. Quase como "pois sim, minha casa é tua casa, faça favor".

É assim tem sido desde então. Tenho-a deixado entrar e servir-se. Que se faça a sua vontade.
Entrou gentil, dócil, de trato afável, sorriso no rosto e palavras carinhosas. Derruba qualquer um. Não tenho como não deixá-la à vontade, na surpresa do que vai acontecer no instante seguinte. Talvez esteja deslumbrada, ou talvez queira simplesmente desfrutar destes doces momentos.  Só sei que não é importante tentar percebê-la ou saber quem é e porque veio. Se veio por bem, que fique por bem.

É tão bom permitir-me receber o que ela me oferece. Mostra-me das maneiras mais simples a abundância que existe à minha volta. Faz-me ir cá dentro, a partes que desconhecia ou que talvez não tivesse reparado e faz-me olhar. Perceber que nem sempre me tratava da melhor maneira, o quanto me julgava. O quão exigente e castradora era comigo. O peso das coisas, a culpa, os medos. A falha, o erro. E eu que sempre fui excelente a ver nos outros, a apregoar, a aconselhar. Excelente observadora. E agora tenho uma estranha que me olha, que me vê e vê também isto tudo em mim e acaricia-me, mima-me, com uma aceitação profunda por quem eu sou. Não preciso de ser mais do que já sou para que esboce um sorriso e me diga quão perfeita eu sou no meu pacote completo. Sem mais, nem menos, simplesmente como estou. De pijama, despenteada e descalça. E na simplicidade admira-me. Na minha tristeza admira-me, nas lágrimas que caem, beija-me o rosto e abraça-me, ri comigo nas minhas gargalhadas estridentes.

Continuo sem saber quem é esta estranha, só sei que mora cá em casa e como ela é bem-vinda. Para além de me sentir confortada, mostra-me que tem um coração tamanho do mundo, irradia um Amor sem explicação. Gostava de ser como ela, como a admiro. A sua generosidade é infinita e dá-me tanto que só posso mesmo dar-me também, como um vírus contagioso, daqueles que se propagam e se espalham por quem estiver por perto.

Mantenho-me aberta e curiosa, quero esta estranha sempre por perto, faz-me bem à pele e ao coração. Porque só chegaste agora? Sinto que sempre estive à tua espera e só agora encontraste a minha morada. Talvez só agora tenha deixado a porta aberta para tu entrares. Minha casa é tua casa. E ainda bem que chegaste a casa.

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