Preciso de ti






Preciso de precisar-te. Tantas vezes te procurei. Tantas vezes pensei que te tinha encontrado. Outras tantas achei que tinha perdido. Encontros e desencontros, sempre. Até que há aquele belo dia que se deixa de procurar. Nem sei bem se é por desistência ou por esquecimento. Quando te ocupas de ti e estás preenchido, esqueces de procurar. Não te faz falta. Por breves momentos estás saciado. Até que a vida te brinda com mais um encontro inesperado e aí, quando nada esperavas, rendes-te, por no meio da plenitude e estado de graça vir mais abundância e acolhes como o presente mais esperado. Até que a vida te permita, vives o encontro, sem mas, nem porquês, rendido ao presente. E quando chega a hora da despedida poderes com a mesma gratidão com que recebeste dizeres adeus, até sempre.

É esta a verdadeira arte de amar em liberdade, receber, doar só porque sim. Manter a dinâmica viva deste movimento que é viver. Ainda que seja simples o relato, nem sempre o processo interno é tão pacífico. O mergulho nas águas profundas não se faz sem dor. E quanto mais nos apegamos, maior é o sofrimento, pois que há uma parte do ser que se apega às memórias, ao que foi, ao que podia ter sido, o que faria diferente. A perda traz a consciência de onde falhámos e a coragem para evoluir, para que ocorra a mudança.

A polaridade é tão necessária para que através dos contrastes possamos nos transformar e evoluir. Quando estamos na zona de conforto, estagnados nos hábitos e na rotina, e nos recusamos a transformarmo-nos e a crescer, a vida puxa o tapete para nos "obrigar" a fazermo-nos à vida. Viemos cá para trabalhar, para sermos a cada momento a nossa melhor versão de nós próprios. Os outros que que se juntam à nossa vida vêm com o papel de nos ajudar a cumprir esse propósito.

O jogo de espelhos que o outro representa connosco para nos mostrar as partes ocultas em nós é extraordinário. Mostram-nos as qualidades que temos dentro e que não reconhecemos como nossas.

Admiramos no outro aquilo que ainda não somos capazes de reconhecer em nós. No outro extremo, temos o lado de sombra, aquelas partes de nós "menos boas" que escondemos por vezes até de nós próprios e que o outro nos revela através de atitudes e ações que despoletam esse lado em nós, do qual nos envergonhamos ou ainda é o outro que responde com essa sombra que é nossa também e que punimos fortemente, por ser inaceitável na nossa mente púdica e sedenta pelo modelo perfeito.

Mas vamos mais longe ainda... A relação de pais e filhos. Que padrão perpetuas nos teus relacionamentos, que vêm do modelo como foste tratado em criança? Até integrarmos a criança ferida, vamos para fora à procura de relacionamentos "perfeitos" para tapar a ferida aberta. Aquela que está gravada no inconsciente e que por vezes até temos alguma consciência, mas preferimos não ver, não mexer. Deixá-la ali bem sossegada, principalmente quando está a ser nutrida no presente.
Temos os pais que escolhemos, para que possamos cumprir as lições a que nos propusemos vir
desempenhar. E reclamamos da falta de segurança, de atenção, rejeição e abandono que eles nos deram, quando vieram com todo o amor prestar esse serviço a nós. Parece duro aceitar isto, não é?

É o que é, cada um com o seu drama (a sua história pessoal) rico em aprendizagens, para que possamos ser a nossa mãe e o nosso pai e criar a nossa própria estrutura emocional, auto-suficiente para que nos possamos nutrir e responsabilizar-nos por que somos.

E quando em adulto atrais relações em que te sentes rejeitado, abandonado, mal amado, tens a raiz das tuas carências. Vai lá atrás e percebe onde é que os teus pais te trataram em algum momento assim. Não para ficares preso "no coitadinho de mim, agora percebo", mas para libertares e perceberes que o adulto que és hoje já se sabe cuidar. Que os progenitores fizeram o melhor que sabiam, também eles a se cumprirem e a fazerem as suas aprendizagens.

Vim de uma história em que fui um descuido. Uma surpresa. Não fui programada e isso gerou algum desconforto para a mãe, que teve vergonha da gravidez. E era uma menina. A preferência sempre recaiu no irmão mais velho. Sempre o melhor. Mas como nem tudo é triste, a menina foi o presente esperado do pai, a menina dos seus olhos. Contudo, só a pôde contemplar nos seus primeiros 2 anos de vida. Ficou a mãe a desempenhar os 2 papéis e a nutrir esta criança. Ela teve tudo. Cuidado e todos os bens necessários ao seu sustento. Faltou-lhe o afeto, o mimo, não que não o tivesse, mas não nas doses que gostaria de ter tido. A mãe tinha de trabalhar e a sua presença era escassa. Era um misto de amor e medo. Queria o afeto, mas não sabia como chegar a ela, ao mesmo tempo tinha medo dela. Arranjou mecanismos para lhe chamar a atenção, fosse através da doença, estar doente permitia-lhe receber atenção e mimo, fosse através de provar que era capaz e responsável.  Constantemente precisava de provar o seu valor. Dessa forma poderia garantir que tinha o amor dela. Tinha de lhe mostrar que era forte, segura, independente na expetativa que a mãe olhasse para ela e lhe desse uma palmadinha nas costas. Não deu. Fez um trabalho melhor. À medida que a menina ia construindo os seus feitos foi ganhando confiança nela e deixando-a voar sozinha, sem rede. E por vezes acrescentava-lhe ainda mais responsabilidade. Eu sei que consegues, então agora vais liderar. E aí a falsa segurança que exteriorizava abanava toda, os medos vinham ao de cima, mas não tinha como recusar, respirava fundo e lá ia toda tremendo cumprir mais um dos pedidos da mãe.

E foi esta matriz que moldou esta menina/criança que teve de crescer prematuramente e entrar no mundo adulto cedo de mais. Sem saber o que era colo, desprotegida, envolta numa capa cheia de proteções e defesas para enfrentar o mundo como se de uma batalha se tratasse. A estrutura emocional fragilizada, para não dizer inexistente. Claro está que procurou nos relacionamentos encontrar a mãe e o pai que lhe dessem colo e o mimo que não tivera, para que pudesse baixar a armadura e descansar. Mas como não é fora que se encontra, vem a perda e o desencontro devolvê-la às suas próprias carências para que a cura se possa dar. E aí começam a surgir os verdadeiros encontros, os de dentro. A consciência de que a adulta/menina pode nutrir-se a si própria. Que está tudo bem em emocionar-se, em descansar, relaxar, rir e chorar. E que a vida não é uma batalha em que tem de se andar sempre com as defesas levantadas. Que está tudo bem em cair e levantar. E que abrindo os braços para a vida para dar e receber, tudo é mais simples, amoroso e grandioso. Aprendera a 1ª lição, permitir-se sentir, saborear e viver.  A 2ª lição, valorizar-se. Não precisar que lhe reconheçam o valor, aprender a ver-se, sem depender da opinião e aprovação dos outros. A 3ª lição que é bem mais profunda é a do Amor e o medo. Perceber que se ama a si próprio, que se doa ao outro pela generosidade que lhe é inerente, porque é tudo o que é e entregar para o alto. Não importa como o outro vai receber. O outro não vai deixar de amar, ou se deixar é algo que não é controlável por quem dá. É o que é. E como o universo é abundante, tudo o que damos com amor, o universo retribui. Não interessam os personagens da história, se não é a mãe e o pai como tanto desejaríamos que fosse ou a pessoa amada. Estes por vezes desempenham apenas o papel de motor impulsionador. Desapego é também outra grande lição de amor incondicional.

Os maiores medos do ser humano estão relacionados com o abandono, rejeição e morte. Há uma necessidade profunda se nos sentirmos pertença, seguros e amados. E a partir desses medos tentamos controlar as nossas ações para ver se conseguimos garantir estes requisitos de sobrevivência. Garantir que gostem de nós e para isso desempenhamos falsos papéis de meninos bonitos na expetativa que nos aceitem. Até que um dia a máscara cai, e desiludimo-nos da ilusão que criámos para nós.

E quando nos libertamos e nos permitimos ser, sem nos preocuparmos com o que os outros podem achar, porque na verdade o nosso maior crítico somos nós e não os outros, conseguimos Amar sem a sombra do medo. Somos livres para amar,a nós e os outros. E quem somos, ao olharmo-nos ao espelho, vai também refletir o tipo de pessoas que atraímos para as nossas vidas e o tipo de experiências.  Aí é a experiência que nos vai mostrar o quanto temos integrado em nós esse Amor sem medos e quais os medos que ainda persistem para serem curados. É o treino do dia a dia e de uma vida que nos devolve e mostra como está a nossa paz e a relação com a minha menina/criança. O quanto de sombra ainda escondo de mim e o quanto de luz me permito brilhar.

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