Celebro-te

Sempre te conheci, desde que me lembro e memórias tenho. Eras habitualmente a primeira pessoa que via ao acordar e das últimas ao deitar.

Ainda pequenina era contigo que me sentia protegida e acolhida. O meu colo, o meu mimo. Ajudaste-me a aprender a escrever, praticavas comigo. Ensinaste-me a costurar, a cozinhar, os afazeres da casa. Confesso que muitas vezes fui uma aluna indisciplinada, mas tu bem te empenhavas para que aprendesse. Uma menina tinha de saber fazer estas coisas. Bem tentaste que cuidasse de ter um enxoval, mas aí a minha irreverência e espírito livre nunca conseguiu obedecer. Mas que tentaste, tentaste.

Foste aquela que me compreendeu, que me escutava, que me jogaste a mão quando mais ninguém conseguia perceber o que se passava comigo, protegeste-me sempre. Ensinaste-me a ser perspicaz, a estar atenta, a observar o que estava à minha volta, a defender-me por mim.

Mostraste-me o que era ser uma líder, a desbravar caminho, a ser corajosa, a ter pulso firme, a firmar vontade. Mostraste-me o poder e a força de ser mulher, pelo teu exemplo.

O saíres de casa aos 12 anos para uma terra estranha, os Algarves, em busca de trabalho e autonomia.  Solteira até aos teus valentes 30 e poucos anos, idade já avançada para a tua geração, só decides ser mãe aos 36. E foi sempre à tua vontade, quem vestia as calças lá em casa eras tu. Engenhocas, desenrascada e mulher dos 7 ofícios. Lembro-me de miúda ver-te de lenço na cabeça, rolo na mão a caiar paredes, a carregar jarricões de água, acender candeeiros de petróleo, a amassar folares. A encher panelas e tachos sempre a cozinhar. Negociante de primeira, a ti ninguém te passava perna, sabias os preços de cor e salteado de todos os supermercados e não te importavas de andar quilómetros a saltitar de um para o outro para selecionar os produtos mais económicos ou com descontos. Não tinhas papas na língua. E quando havia qualquer coisa que não te cheirava, não descansavas enquanto não descobrias o mistério por detrás.  Sempre em movimento, de sol a sol, para ti o trabalho, o fazer era motivo de orgulho. Nunca te ouvi queixar de cansaço ou que o trabalho era muito, antes pelo contrário, era um prazer fazer. Nem com o passar dos anos te permitias descansar. Quiseste sempre continuar a fazer, só assim te sabia bem, a comida cozinhada por ti e te sentires útil.

Apontavas-me o dedo também por não ter saído a ti, por estas meninas de agora não terem o mesmo gosto pelas lidas domésticas, por não acordarem cedo, a preguiça de deixar para amanhã. Lembro-me do quanto te zangavas quando depois de teres a cozinha arrumada me lembrar de comer fora de horas e deixar o prato sujo ou migalhas espalhadas. O quanto me ralhavas e me dizias que a cozinha tinha de ficar sempre arrumada. Não se sabia quem podia aparecer e tudo tinha de estar limpo e impecável.

Eras impecável com a tua forma de ser e de estar, mas também um doce, com as tuas gargalhadas inocentes, com o teu jeito de falar muito próprio, o quanto ríamos com as palavras que inventavas e o quanto tu te rias de as dizeres também assim. E lá te esforçavas também, mas não conseguias dizer diferente, e isso era tão teu. As invenções que fazias tão hilariantes para solucionar problemas. O picante nos móveis para que o cão não os roesse. Os sacos de plástico no rabiosque do cão para que ele não mijasse a casa, que evoluíram posteriormente para as fraldas. As longas conversas com o cão quando estavas sozinha com ele e ao chegar a casa, ficávamos com a sensação de ter a casa cheia e afinal eras só tu e ele. Divertias-te sozinha. Tinhas sempre alguma coisa para contar, as notícias da tv, as novelas, e a dica da semana. Era divertido ver-te com o jornal levantado nas tuas leituras diárias, sempre interessada por estar a par da novidades.

As histórias de infância as tuas, que nos deliciavam, a capacidade de inventar histórias para nos entreter. E os cantares antigos alentejanos.

Língua afiada e coração doce, foste filha, mulher, mãe, avó e bisavó, cuidaste e permitiste-te ser cuidada, numa dança de 94 anos até ao último sopro. Assististe à fome, à guerra, à miséria, à rádio, à Tv a preto e branco e a cores, aprendeste a ler, numa altura que era difícil as meninas terem acesso, mas a tua vontade e inteligência permitiram-te ter acesso a alguns anos de aprendizagem e sempre foste praticando e mantendo presente a escrita e a leitura. Tiveste acesso às mordomias das gerações vindouras, água e luz que sempre valorizaste como bens preciosos. Viste-nos crescer e tornarmo-nos adultos, enterraste um filho e um marido e mantiveste-te firme, aceitando a vida sempre,  agarrando-te a ela com muito amor e aceitação. Nunca te vi com pesar, talvez por momentos alguma saudade, mas com aceitação sempre.

Sempre te vi com muita serenidade e é com essa serenidade que te vejo partir, com a sensação de que cumpriste a tua parte. Nunca quiseste dar trabalho, lembro-me de dizeres que não querias ficar presa numa cama, quando chegasse a tua hora que te levassem rápido, para não dares trabalho. E na verdade, quando começaste a ficar presa à cama, começaste a despedir-te e a pedir que te levassem. Começaste a preparar-te para a fase seguinte. Sempre foste muito à frente para o teu tempo, e até nesta hora tiveste a capacidade de nos preparar a todos para a tua partida. Já sabias e mantiveste-te cá até sentires que estávamos preparados para te deixar ir em paz.

Só posso celebrar-te pela grande mulher sábia que és. Ambas sabemos que é só uma passagem e que vais estar sempre presente. É só o corpo que se despede. Foi uma alegria poder ter-te tido, sentir o teu toque e presença, ouvir a tua voz, assistir-te e é uma alegria saber-te a fazer esta passagem gloriosa para outro plano, para que possas continuar a tua evolução e crescimento noutra forma e estágio.

Comentários

Enviar um comentário

Cuspidelas