A morte que entra pela casa adentro

Há momentos em que a morte te entra pela casa adentro. Sem aviso prévio, nem convite. Apenas chega, entra-te pela casa, senta-se no sofá contigo e instala-se com bagagens, vem para ficar.

E ela, incomodada com estranha presença, sente-se observada, invadida. De repente tinha essa visita inesperada que lhe acompanha para todo o sítio. Já não há privacidade, porra pá.

E a morte de fininho vai-lhe preparando. "Tens de morrer", diz ela. E logo agora que ela não tinha tempo nem disposição para morrer.

Nos primeiros tempos ela foi boa anfitriã para a morte. Recebeu-a bem, alimentou-a, ouviu-a e deu-lhe os melhores aposentos. Afinal sempre gostou de bem receber, mas à medida que foram ganhando intimidade e percebendo o que a morte queria dela, deixou de lhe achar piada. Afinal também gostava muito de estar só e ter a companhia da morte 24 sobre 24 horas não era fácil. Nem sabia bem as intenções que a morte tinha para ela.

No início achou-lhe piada a novidade das coisas novas que lhe propunha e naturalmente cedeu-lhe. As paragens, os silêncios, as mudanças de hábitos. E depois foi-lhe sendo pedido mais. Agora pára por completo, foi a gota de água para ela. Não sabia como, tinha medo dessa paragem. Nem se lembra da última vez que tenha parado de livre e espontânea vontade, porquê fazê-lo agora? E resistiu a esse pedido. Não sabia que não tinha escolha. Ela não quis parar, e a morte teve de a parar à força, teve de a desarmar para que ela parasse.

E aí, percebeu finalmente que estava a resistir a não querer parar. Só conseguiu perceber quando parou. Ficou presente, rendida à morte.

E subitamente começa a sentir o fumo a entrar-lhe pela casa adentro. Foi à janela e a casa da frente estava em chamas. Um incêndio tinha deflagrado. Um espetáculo com tanto de imponente e magnífico, como de destruidor. Foram umas 3 horas a ver de frente, uma casa a ser destruída, o fogo a consumir as estruturas daquele telhado e a água a apagar o fogo.

Era isto a morte? O ruir de uma casa velha, para que o sol iluminasse o interior da casa? O telhado tinha desabado por completo, ficando a casa a descoberto, as paredes exteriores ficaram intactas. E hoje o sol entrou em leão. Para que ela se pudesse expressar tinha que queimar e deixar morrer o velho. E hoje foi o funeral, com cremação.

O simbólico que é tão revelador da realidade. E como se não bastasse, hoje foi ver um filme francês "respirar". Em caso de dúvidas vem o filme encerrar o capítulo, mais uma vez com a morte literal de um dos personagens. A luta das personagens pela necessidade de serem amadas, cada uma com o seu drama representando os papéis de vítima e agressor. Uma que implode e a outra que explode em jogos de manipulação e permissões, até que a que implode, de tanto resistir, mata para não morrer da sua própria dor. A morte como salvação e transformação de si mesma.

A inevitabilidade de morrer para que a transformação aconteça. E o fogo que vem purificar, limpar, para que possa voltar a ser reconstruído.

Estava a aceitar morrer, era inevitável. E começava agora a respirar...


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