A boneca de porcelana

A boneca de porcelana finalmente chegara. Um presente que lhe entrara pela casa adentro. Não fora esperado, mas talvez desejado. Não por ela, mas pela família. Fora-lhe contado histórias de que era uma boneca especial, noutros tempos era uma relíquia, só as meninas ricas é que brincavam com bonecas de porcelana e colecionavam. Era quase como possuir uma jóia preciosa, um bem a ser estimado. E aquela menina criança acabara de receber esta boneca. Um presente envenenado, pois o que faria ela com uma boneca intocável? Até àquele momento só tinha recebido bonecas baratas e de trapos com as quais brincava, vestia, pintava, cortava cabelos e aquela tinha recebido tantos avisos, que não podia brincar com ela. Do que lhe serviria?

Tinha cabelos dourados com saca-rolhas, vestido branco, em tecido requintado, cara pálida de porcelana com rosáceas e lábios pintados. E lá foi ela para a prateleira mais alta da escrivanhia a servir de bibliot. E dali a menina criança apreciava a sua boneca intocável. Para alcançá-la tinha de se colocar em cima da cadeira. Até que num dia fatídico a limpar o pó das prateleiras a boneca de porcelana esgueira-se para o precípicio e decide voar em queda livre. E aquela jóia que não era dela, mas do ideal das mulheres de família realizado através daquela criança quebrava a cabeça. A menina criança escondeu esse episódio, não quis destruir o sonho da família. Apressou-se a juntar os galhos e a colá-los, e o chapéu da boneca de porcelana disfarçou as cicatrizes.

A menina criança cresceu e a boneca continua naquela prateleira, com o vestido manchado pelo tempo, com a sua expressão pálida e vestido burguês.  Nunca brincou com ela, não porque não quisesse, seria um sacrilégio se o fizesse. E ainda assim a menina criança conseguiu partir-lhe a cabeça. Talvez como às mulheres da sua família, por ter seguido sempre trilhos tão diferentes ao que teriam esperado dela e também diferente das outras meninas da idade dela.

Brincava sempre sozinha e quando se juntavam outras meninas fartava-se rapidamente e tinha surtos de egoísmo e repulsa, querendo ficar sozinha. Tinha de ser à maneira dela. E tantas vezes pagou o preço do seu egoísmo com castigos e punições e continuava sempre a impor a sua vontade.

Já em adulta a menina questiona a mãe para que esta a descreva. E a mãe prontamente lhe responde, que era determinada. Quando punha alguma ideia na cabeça ninguém a conseguia demover, custasse o que custasse, ela iria trabalhar para conseguir lá chegar. Como a boneca de porcelana, mesmo de cabeça partida, lá continuava a estar com o mesmo rosto pálido e sereno, a jóia exposta, com remendos, mas inteira. As cicatrizes da vontade de voar e conhecer outro mundo para além daquela prateleira.

Por uns tempos achou que tinha de ser como a boneca de porcelana, intocável, tinha de ser proteger para que não quebrasse, sabia-se que era feita de matéria preciosa e frágil. Estava no topo da prateleira para que o acesso a ela não fosse fácil. E ali exposta podia ser apreciada de longe, o ideal de qualquer menina de bem, ali estava. E por uns tempos a menina foi a boneca de porcelana, a comportar-se de acordo com os padrões aceitáveis. Até que ganhou pó e ficou esquecida naquela prateleira. Mudou-se e esqueceu-se da boneca de porcelana. Foi-se embora e deixou uma parte dela naquele lugar.

Chegara o momento de reunir as partes e dar vida àquela boneca, aquele presente que fora um dia envenenado. Sugar-lhe o veneno e transformá-la numa parte de si.  Foi preciso sair daquela casa, daquela infância para perceber que tinha uma pele, que lhe corria sangue nas veias, que tinha carne e ossos. Perceber que não bastava colar os cacos e voltar a colá-los. Nada ficaria igual a antes. As marcas ficam. E a pele mostrava-lhe que tinha odor, tinha tacto. Sentia dor, prazer e que a cada dia a sua pele mudava e lhe mostrava novas facetas, novas caras, novas peles, novas vidas. Deixara de ser intocável para começar a tocar e a ser tocada. Deixara de estar protegida, estava exposta. E se lhe tocou bastante perceber isso, fora até desconfortável, sentira-se vulnerável, frágil, com o tempo a pele foi-lhe mostrando que aguentava, quanto mais vulnerável e exposta, mais força recuperava, mais impermeável ficava, mais maleável.

Lembrou-se que a sua boneca favorita era uma boneca de trapos com cabelo de lã. Era fofinha, maleável, flexível na sua forma, dobrava-se toda e mantinha-se sempre inteira. Conseguia apertá-la com força, servir-se dela como almofada e mantinha-se fiel à sua forma original. Podia levá-la para todo o lado sem restrições, não quebrava. Agora a menina adulta recuperava todas as bonecas nela. Seria pois uma espécie de boneca de trapos, a juntar todos os retalhos, as experiências e fazendo delas a sua pele que se renova de tempos em tempos.

A boneca de porcelana ainda lhe vem algumas vezes avisar que ela também quebra e que pode quebrar, poderá sempre ser consertada e ganhar uma nova pele. E que para quebrar tem de esgueirar-se da prateleira e lançar-se a novos vôos.


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