A peregrinação


A viagem começa quando tomamos a decisão de ir do ponto A para o ponto B. Há um movimento silencioso que começa a manifestar-se em cada passo. Há uma parte desconhecida que não se alcança, apenas se observa e prescuta. No caminho situações novas, um novo olhar que se prepara para algo que não tem como adivinhar. Uma espécie de preparação se inicia, mas como o dia dia continua com as suas tarefas rotineiras, os compromissos, tudo é muito subtil. E num crescendo a data marcada começa a aproximar-se e a preparação torna-se declarada. 48 horas antes da descolagem e é inevitável que toda a preparação já esteja num pulsar em contagem decrescente. Deixar todos os projetos e trabalhos fechados, passar pastas, cuidar para que tudo possa continuar sem que a ausência seja sentida. Tratar dos bilhetes, seguro, as encomendas, pensar no que levar na mala. Assegurar que há todo o equipamento e malas e por fim, fazer a dita mala. Pensar na roupa que se quer levar. Essa é a parte sem dúvida que gera algum desconforto. Preparar roupas para um mês, tentar adivinhar o que apetecerá vestir num prazo alargado de um mês, faz calor, verão, mas e se estiver frio também? Há que equilibrar e garantir que o conforto esteja assegurado. É preciso antecipar, pensar a médio prazo, afunilar e limitar as opções de escolha ao que a mala levará dentro. Nestes momentos acede-se às dificuldades, ao receio de deixar em terra algo que possa ser importante. E curioso, perceber que em cada viagem leva-se cada vez menos coisas, como resultado de não usar muitas das coisas que se leva, vai-se reduzindo a bagagem ao essencial.

Fazer uma mala é também arrumar ideias, desapegar, selecionar. A escolha do que se quer levar para acompanhar nesta jornada. E simbolicamente quantas malas já foram arrumadas, antes de se preparar "a mala" da viagem? As malas que fazem parte do dia a dia. Finalmente, parei. As malas dos vários projetos/ trabalhos estão arrumadas e fechadas, só falta a que é importante para levar comigo. Ainda que não esteja concretizada, já moram algumas ideias do que levar dentro dela, falta empacotar.

E tenho em mim a sensação de fechar malas, fechar ciclos, pôr ordem. E cada seção é respirada, há um deixar ir, um desapegar, uma despedida. Uma espécie de morte silenciosa que vai abrindo espaço. Uma estranha tranquilidade que se mostra em movimento giratório, um pulsar de vida, um nervo miudinho. Sabe-se que a pessoa que parte numa peregrinação não é a mesma que regressa. O caminho transforma em passinhos subtis a pegada, o olhar, muda a pele, amplia a perceção. Quem vai já não volta, ainda que a pele possa ser a mesma. E deixar morrer é também uma despedida, um obrigada a quem aqui esteve neste lugar. Há um carinho, uma ternura que dói largar. Sabe-se que a morte dará lugar um novo renascimento, a uma versão renovada, e espera-se com amor essa nova vinda. Mas nos entretantos, cada momento é para ser sentido e vivido. E mora aqui a nostalgia de um olhar agradecido, que guarda memórias de tanto recebido, da abundância enorme que a vida lhe tem dado. Sentir-se tão cuidada e protegida. Abençoada por esta terra à beira mar, tão generosa. Pessoas afáveis e amorosas que a mimam. E cada coisa ocupa o seu lugar para que desfrute e possa deixar ir.

E sentir que vou com a oportunidade de ter celebrado e agradecido a esta terra que me acolhe dá-me o colo e a segurança de que vou abençoada. Banhos de mar na Páscoa, nas praias lindas do nosso Algarve, caminhada na natureza, poder ter feito um círculo de fogo na terra e agradecido à mãe. Em alegria ter fechado o meu trabalho permitindo que todo o meu ser se abrisse e confiasse nas propostas que vão saindo de dentro para serem partilhadas. Estar com os meus, em família, em comunhão. Sentir que me dou cada vez mais inteira em cada momento, espontânea, alegre, fazendo o que amo... que mais posso querer, senão agradecer por deixar que a vida me viva?

E se esta é a minha morte, morro alegremente, por estar a viver intensamente, aceitando as propostas que a vida me coloca no caminho. Há mais mundo por descobrir, e aí vou eu... de coração aberto, rendendo-me ao infinito.

Não tenho como adivinhar, quem virá depois de mim. Não importa. Aqui estou, e que seja feita a sua vontade. Pronta para dar cada passo e preparando-me para o que vier a seguir.

Levo na mala roupa para me cobrir, um caderno em branco para que possa começar sempre a escrever de novo e a fé para conduzir no caminho.

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