Os icebergs que moram no congelador



Já há algum tempo que o meu congelador me alertava que estava a precisar de ser limpo, mas eu ia empurrando e adiando a dita da limpeza. Mas na verdade estava cada vez mais desafiante arranjar espaço para arrumar a comida nesse compartimento. O gelo ganhava cada vez mais espaço... e icebergs foram-se formando naquele  compartimento retangular no topo, nas laterais e até mesmo no fundo. E eis que, hoje chegara o dia de olhar e pôr as mãos na massa. A "culpa" foi dos rissóis que vieram naquele taparuere, prontos para ocuparem espaço naquele compartimento e por mais que empurrasse, não havia lugar para ele. E sem mais demoras, nem questões sobre se era o momento ideal para tal tarefa, instantaneamente esvaziei todo o compartimento e lá me pus a martelar o iceberg. E apesar do frio lá fora e que também se faz sentir dentro de casa, lá fui jogando as mãos ao gelo. Primeiro as mãos queixaram-se do impacto, mas foram-se habituando. E o que parecia inicialmente uma tarefa árdua, rapidamente se quebrou, à medida que o gelo foi cedendo também.

E cada pedaço gigante que ia caindo para mim era uma vitória, e o espaço ia aumentando, e o caminho cada vez mais desbloqueado e até a força do martelar era renovada com o entusiasmo de continuar a desbravar caminho.

Durante esta tarefa doméstica fui-me apercebendo da excelência desta tarefa, uma analogia tão perfeita da vida real. Quantas coisas vou deixando congeladas na vida, seja por agora não é o momento de olhar e arrumar, e vou adiando, seja porque esta rotina serve-me e vou alimentando-a e não percebo o quanto se vai cristalizando e entorpecendo a minha visão e forma de olhar, perceber e sentir a realidade que está à minha volta. E dessa forma a água que é vida e movimento cristaliza-se, torna-se fria e gelo.

Gelo que queima a pele, que traz dor e quando descongela reinicia um movimento. A sensação de mais espaço, de leveza, respiração. Partir o gelo também exige empenho, dedicação e vontade e por vezes custa partir. Há momentos em que apetece desistir, parece que não cede, não quebra. Há momento de deixar à temperatura ambiente para que ele se encarregue de amolecer o gelo, de o derreter um pouco para depois, voltar a picá-lo. E ainda que frio, era macio o pó de gelo que se foi formando, parecendo neve delicada.

E as águas falam sempre de emoções. E o gelo de emoções congeladas. E quando abrimos a porta e colocamos a intenção de trabalhar algo, a vida encarrega-se de nos ajudar com as propostas indicadas de momento. E a intenção colocada foi trabalhar a vulnerabilidade, desnudar e eis que a vida começou a presentear-me com o tema, expondo-me à minha própria vulnerabilidade despertada com situações externas e trazendo-me também outras histórias de vulnerabilidade para que pudesse presenciar, apoiar, cuidar e dar suporte. E num abraço a mim me envolvo e suporto e num abraço às partes de mim que me têm chegado através das histórias das outras pessoas me cuido, me amo, me perdoo e me curo.

E mesmo o gelo tem a sua beleza, a textura, o brilho, a transparência, a brancura. E quando lhe damos calor torna-se macio, maleável e dança. Quando seguramos no nosso gelo estamos a dar-lhe calor e a permitir que derreta.

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