As viagens na minha terra.



A terra que piso revela-me a casa que habito, o ar que respiro. Não importa se é a terra onde nasci ou onde moro. Toda a terra me habita, e eu nela habito. e há ainda tanta terra por descobrir, por conhecer.

Sentir calor numa terra fria é um excelente cartão de visita. É sentir-me bem acolhida, e receber elogio em húngaro, e eu sorria sem entender uma única palavra, até que um rapaz húngaro que assistia à conversa me faz a tradução "He's saying that you are beautiful, beautiful face", então compreendi os gestos que o senhor fazia, ele contornava o seu rosto com as mãos deliciado, sorrindo e apontava para mim, dizendo You. Saí sorrindo do tram, dando a mão a este simpático senhor.

Mais do que o embate na nova terra que se pisa, é olhar-me e perceber-me com novos olhos. Prestar-me atenção, numa nova terra, observar o que mexe, o que me deixa confortável e desconfortável. Buda e Peste. Buda, a simbolizar a riqueza, a nobreza, o local elitista onde foram construídos os edifícios mais ilustres, a zona mais cara e um rio, o Danúbio, a separar da Peste, o local da classe mais baixa, dos judeus, da indústria. E também na Peste edifícios ricos como a grande Sinagoga e o Parlamento. E os tempos uniram o Buda e o Peste em Budapeste. A unificação dos pólos, a reunião das partes. Ainda que na prática, se sinta a diferença dos preços entre um lado e outro, tudo está já reunido. Interessante as fronteiras, as barreiras, neste caso um rio, a marcar a separação entre dois pólos.

Foi uma viagem marcada pelos meus pés. Estiveram sempre muito presentes. As botas que elegi para a viagem, quentes, preparadas para a neve que teimou em não aparecer, eram demasiado quentes para o frio que se apresentava. Tornaram-se pesadas, desconfortáveis para o caminho, tornando por isso o caminho muito vincado, presente, cada passo, cada metro, cada quilómetro. Contrariando o tempo frio, o meu processo foi ir despindo a roupagem, ficando no último dia apenas com a roupa interior e o casaco. Foi ir despindo-me da carga que levava, em forma de roupa, foi sentir o calor incómodo num frio que gelava o rosto e sentir-me confortável e mais leve por cada peça que subtraía do meu vestuário.

Entrar pela primeira vez numa Sinagoga e sentir  humildade, simplicidade neste templo. E para surpresa minha senti mais presente Jesus neste templo do que numa igreja. Não se explica, sente-se. É viajar no tempo e transportar-se para lá do tempo.

E pela primeira vez entro numa Igreja, Mathias, e não sinto o peso do catolicismo, da igreja. De uma leveza enorme, uma obra de arte transformada num templo. A alegria das cores, das texturas, dos padrões no chão, nas paredes, cada espaço com uma ambiência diferente. Um movimento vibrante ondulante, como uma dança.

Visitar um parlamento com estilo de palácio, com a coroa e o ceptro original. A grandeza dos edifícios e da obra humana à simplicidade de uma igreja embutida numa gruta, o rigor da madeira talhada à mão, com uma minúcia e detalhe impressionantes. A habilidade e criatividade do Homem que se transcende a si mesmo na Criação.

"O impossível somos nós", frase esta que escutei em 2014 e que desde então me ficou gravada. Somos nós que nos limitamos, que criamos barreiras, que bloqueamos para não viver. Hungria fala-nos da superação. Da luta, dos judeus que conseguiram marcar o seu lugar aí e construir a maior Sinagoga da Europa, do povo que protegeu os judeus na 2ª guerra mundial, do país que ficou arrasado e destruído com a guerra e voltou a reconstruir, a recuperar o seu património. E o cuidado que têm com a sua obra, como a protegem e restauram é de louvar. E sentir serenidade nos rostos húngaros. Tímidos, mas de rosto sereno, nem todos falavam inglês, mas apontavam para outros numa vontade de querer ajudar, e quem sabia falar prontificava-se em ajudar e a procurar a informação no google para nos ajudar.

O que trouxe? Nem sempre é traduzível em palavras, pois é invisível aos olhos, penetra-nos na pele e leva tempo a mostrar-se. Aquela que foi, não é certamente a mesma que voltou. Há uma marca que se deixa por onde se passa e outra que se traz.

É também observar o desconforto de quando se está em território estranho e não se conhece o caminho e como se lida com o estar perdido, sem orientação no caminho de volta. Confiar que aparecerá a estrada que te levará de volta. É percorrer ruas sem fim, dar voltas enormes, andar às voltas. É respirar, é assistir à impaciência e ao stress das companheiras de viagem, é passar por caminhos sombrios, sem gente a horas tardias e confiar que o hotel vai estar já ali, e por fim confirmar que sim. É perguntar e voltar a perguntar, é voltar atrás, é seguir em frente, é deixar-se ser guiado por estranhos e confiar que nos levam por bem. É confirmar e reconfirmar se batem certo as contas, reclamar se não batem, e debater pelo que é correto. É desafiar os limites do medo das alturas, encarar as vertigens, é ir para os contrastes, desafiar o frio de fato de banho e chinelos para um banho de água quente. É permitir relaxar e adormecer nas termas de água quente. É montar cama no chão do aeroporto e dormir profundamente enquanto se espera pela hora do avião.

E cada vez que viajo sinto que deixo lá medos, rótulos, conceitos construídos apenas na minha mente, pelas influências que fui recebendo da família, amigos, de relatos de experiências de outras pessoas, que descartamos, mas que sem saber ficam impregnadas no inconsciente e quando vamos para terras "desconhecidas" eles começam a vir. E aí aproveito para os soltar, para os deixar, não preciso que carreguem a minha bagagem. Venho sempre com menos e trago mais.

Somos todos da mesma terra, com uma criação diversa que revela a riqueza da criatividade humana, e como a inspiração multicultural nos faz criar tantas coisas e é uma inspiração para continuar a criar.




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