Dominó




Era tarde. A chuva já tinha passado e os raios de sol tímido mostravam-se para clarear o dia. As ruas já mostravam sinais de mais vida, pessoas, carros. O desfile de mascarilhas é a nova tendência destes tempos, como se o Carnaval viera para ficar. Múltiplas cores preenchem as faces dos transeuntes. Tem o seu quê de folclórico, bizarro e divertido. Como olhar para um mesmo cenário te traz tantas sensações diversas. E os horários dos serviços que mudaram e caminhar na cidade de sempre com tudo de novo e o semáforo fica vermelho e olho para os lados e vejo montras vazias do que fora outrora lojas de serviços e produtos. Dois meses passaram, 2 rotundas novas instaladas, novos sentidos na estrada. tanto movimento.

Percorre as ruas à procura e encontra. E ali parada no estacionamento, tantas pessoas passam a seu lado, esboçando um sorriso, notando a sua presença, ainda que se encontrasse ocupada ao telemóvel, os carros que param perguntando se vai sair. Tinha acabado de chegar e estava dando-se o tempo para sair do carro. "In, out, dentro, fora", não é esse o movimento constante?

Achava que ia só ali rapidamente, buscar o jantar, mas o tempo foi passando e trouxe muito mais do que ia buscar. E quem diria, que iria jogar dominó, nem se lembra há quantos anos não jogara esse jogo. Talvez tivesse inventado um pouco as regras, não se lembrava muito bem como era, mas lá inventou um formato, uma forma de jogar.

E por momentos o tempo parou, a pressa de ir desapareceu. Entre risos, gritos, rebeldias, ali estava ela com a sua criança e a criança. A importância de ganhar, a importância de perder. Parece fácil, mas no momento o instinto fala e te faz mover no jogo.
 O baralho de cartas que se desmorona, as peças do dominó que se derrubam. Os números que têm de coincidir, os naipes que têm de fazer parte da mesma família. As transações, os acordos num passeio de peões. E o repositório de memórias que te faz querer esquecer o que foste, o que fizeste, assim como te faz querer recordar o que consideras bom, bonito, afável e amoroso. As memórias recordam-te que sentes, que há dor, prazer. Mas ficando por aqui, seria muito redutor, as memórias religam-te a um passado, presente e futuro, não te definem, mas estabelecem um tom,um ritmo ao que és para que possas transformar-te e evoluir. Para te libertares da memória, pois ela pode definir a biologia, mas vai para além dela. Essa é a oportunidade, a referência, o ponto de partida para reconstruires novas memórias, reciclar, e estar nesse fluxo entre tomar e doar memórias.

E uma peça de dominó é constituída por 1 sequência de números que vai do vazio ao 6 e cada peça é dividida ao meio contendo em cada face um número. Faz dominó quem fica sem peças. Interessante jogo. Na vida assumimos que ganhamos quando acumulamos, juntamos, neste simples jogo, ganhamos quando nos despejamos das peças, ficando sem nada. Gosto dos símbolos, das metáforas.

Ganho quando assumo que tenho memórias, mas elas não me possuem, são apenas imagens sem carga, histórias, narrativas que têm conteúdo para refletir e para guiar para os passos seguintes.

E se hoje acordasses sem memória? Movendo-te ao sabor do que surge. Sem referências, sem padrões, sem conceitos? Tem o seu quê de aterrador... e agora ao que me agarro? O não saber engloba tanta coisa, tudo. Como responderia a organicidade do ser ao apresentado?

Seria a porta de entrada ao resgate profundo das memórias celulares da ancestralidade que transportas dentro do teu ADN, até onde te levaria esse vazio? Se é que vazio se pode chamar... diria melhor, desconhecido. Ou, se calhar a ativação de novas formas de criação...

Gosto de imaginar através dos objetos e das formas que a tela em movimento me apresenta e deixar-me ir por universos por sondar.

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