BioGrafia

 

A sua jornada era rever a biografia. Há um mês que iniciava a sério essa viagem de reflexão. E desde que  o mercúrio se tornara retrógrado, a viagem intensificou-se.

Palavra é energia, vibração que se abre e fica a reverberar. E tocar na sua biografia era abrir esse véu, essa viagem ao passado. E sabemos que o tempo não é linear, tudo se passa em simultâneo e tantas portas se abrem, se cruzam e se toca. E dava por ela a ver  novos pontos de vista, a ligar mais pontos. E nas conversas presentes essas memórias desenterradas metiam-se, atravessavam-se com uma nova luz. 

O campo está sempre em movimento e sempre que tocamos num ponto iniciamos uma nova ordem. Tudo se reordena. É como fazer uma fascina geral à casa, jogar tralha velha fora, reorganizar e ressignificar e tudo ganha  um novo espaço. Ordenaram-se as formas, as identificações e as impressões. Há desarrumações que levamos na mente que nem fazemos a mínima ideia, porque deixámos ali a tralha amontoada e avançámos para o capítulo seguinte.

E tantas vezes punha na agenda a tarefa de continuar a escrever a biografia e surgia todo um rol de outras tarefas e distrações para não pegar. No início isso incomodava-a, pois pensava que lá estava ela a procrastinar. E na verdade, nesses dias ela escrevia imenso e até mostrava foco e desenvoltura nas outras tarefas, menos nesta que lhe parecia ser um peso pesado nesses momentos de preguiça extrema. E começava a observar-se, a prestar atenção. Do que estaria a fugir, o que estaria por trás deste adiar constante. E dava-se conta que tinha aberto uma caixa de pandora e tudo estava em carne viva a trabalhar nela. Inclusive dar espaço para que a memória pudesse aflorar. Já que quando pegava na escrita, iniciava um mergulho profundo que a punha a escrever de seguida sem parar.

A escrita cura. É pôr as palavras a bailar e a conversarem entre si. Permitir que elas penetrem nos locais mais escondidos do ser, que revelem o sentir, as memórias e sensações através da tradução verbal. E isso é dar forma, consistência. Só na forma podemos olhar e dar-nos conta do que é sensível e subtil.

Estamos sempre a traduzir. E com a tradução, interpretamos e reinterpretamos e vamos descobrindo múltiplos sentidos e facetas. E quando percebemos que as verdades são múltiplas, que têm diversos ângulos começamos a despersonalizar e a distanciar-nos. A incluir mais e mais na nossa esfera. E os limites vão sendo cada vez mais ampliados.

E a BioGrafia é a escrita da vida, as palavras que preenchem a história sem que sejam a história em si mesma. Já que essa tem tantos ângulos como o autor da mesma e a perspetiva sob a qual narra a tradução se si mesmo.


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