Polaridade




Há dias que passam e nem se dá por eles... assim como não dou por ela passar. O dia pega-se à noite e a noite ao dia. E tudo corre.... o tempo,  as vozes, a música, a vontade. A presença, a ausência. E no jogo do esconde, esconde, tudo se esvanece...

Parecia já ter feito tanto num tão curto espaço de tempo. E o tempo agora parecia parado, ou teria congelado. A pressa de viver tinha-a cansado. E estava de ressaca a recuperar.

Para quê correr quando podes caminhar? Do que tens pressa? Para quê exibir quando podes respirar?

E às vezes abria a boca e escutava a sua respiração ofegante.... tanto por dizer e fazer que só lhe apetecia ficar... ali quieta a respirar e apreciar.

E tanto por contemplar... tanto por estar presente. Nesse espaço de encontro e de não fazer. 

Encontrava-se com a sua polaridade. E começava a falar sobre ela... não para que o outro a escutasse, mas para que ela mesma se pudesse receber no seu contraste e paradoxo. Merecia receber-se, respeitar-se e amar-se na sua controvérsia.

Do que tinha fome?

De si... de se receber como o presente mais esperado. E existir e tornar a sua existência completa não se tratava de conseguir grandes feitos, nem deixar obra feita... essas foram as ilusões e frustrações que começava a soltar, cada vez mais.

Não precisava de se agradar, de ser agradada nem de agradar... ainda que fosse assaltada pelo nervo miudinho, pelo seu jeito desajeitado que denunciava o desconforto, a insegurança, via-se e assumia-se de si para si. Assim estou. Lidando com o desconforto, com a incerteza, com o pior de si. Via-se e revia-se na sua pele e em tantas peles.

O desejo pela validação exterior. A provocação, a rebeldia, a extroversão, a excentricidade.... quero chamar-te a atenção. Mesmo que não me aceites, sei que me viste. Usou tantas vezes a expressão "Não importa que falem mal, importa que falem".... tal era o desejo de ser vista, ocultado tantas vezes na não importância do " I don't fucking care" e claro que no fundo, lá bem fundo, claro que se importava que se importassem.

A diferença é que agora eu importo-me, eu importo. E a partir do momento que vejo e me revejo e me recebo, tudo fica bem e acomoda-se. E ainda que me dê conta do drama que me corre nas veias e não o consiga evitar, os momentos em que me apercebo, posso cuidar. Sem querer expulsar, nem mandar embora. 

Do que serve criticar, resistir e repelir este ser que sou, por ainda não estar onde acharia que deveria estar?

Passa o tempo... e é tão interessante rever-me e reconhecer-me no outro. Agora com um distanciamento diferente, um carinho e acolhimento por mim e pelo outro.

Recordo-me de não assim há tanto tempo as grandes revoltas que me inundavam.... por me sentir "regredir", de tanto trabalho feito e como ainda voltava aos mesmos padrões, como patinava e não conseguia evitar determinados comportamentos, atitudes.... sentia que tinha jogado para o lixo o investimento feito em mim, que tinha estragado tudo. Ou então desacreditava, punha tudo em causa, e revoltava-me com "estes caminhos espirituais" que não se adequavam à vida real do dia a dia. E mestres, facilitadores, ui, quantas vezes me apetecia bater-lhes, como se fossem responsáveis pela minha revolta, que isto é muito melhor quando encontramos culpados ou alguém em quem descarregar a dor sentida.

O que importa é expulsar a dor, arrancá-la para passar à frente.  Qual o caminho mais rápido e eficaz para me livrar do que dói?  E para que serve continuar aqui... nesta senda por me conhecer e evoluir? Qual o prémio no final da jornada?

Deixa-me fingir que não dói para ver se passa mais depressa.... foi também uma das estratégias adotada.

E hoje os desafios continuam.... que há tanto e tudo sempre por abrir, ver e curar. E olho para quem acompanho nas respetivas jornadas e assisto e sou presença para os momentos de dor e da travessia da noite escura da alma, em que nada mais há do que o teres de te confrontar contigo mesmo e nessa jornada deixar cair os velhos conceitos e formas.... e abandonar as vestes, desapegar e seguir no desconhecido, na presença do não saber, do fluir e confiar tem tanto de belo, de reconciliador, de amor e consciência como de assustador. É dar passos no vazio e saber com o coração que há caminho.

É uma nova linguagem, é uma nova vida.

E reparo e recebo em mim com tanto amor e compaixão a resistência, a revolta, a frustração dos processos ao meu redor, é também a mim que recebo.

Trabalhar em nós dói... é preciso coragem e valentia para abrir, ver e continuar a aprofundar, assumir e aceitar o que vem sem querer arrancar ou esconder. Nada é mau, nada é bom. E estar aí nesse espaço de acolhimento, de neutralidade é Amar.

Há tanto para receber em mim.... E cada pequeno pedaço que acedo e consigo receber é dar-me as Boas Vindas. E aceitar a medida do que é e, não que gostaria que fosse, sem pressas, aceitar o ritmo de cada permissão que o meu ser me vai dando. É respeito. É compaixão. É entender. É aceitar. E aceitar é amar.

E há tanto por aceitar.... Sou abundância, um tesouro sempre a encher-se de riqueza em tantos e todos os níveis.

E se parece egoísta o Mi, mi, mi.... e o que é isto de tanto olhar e curar dentro.... é porque se me vejo como Um, vejo-te também como Um. E tantos Uns. Sempre que te vejo é sobre mim que falas... o que rejeito, o que acolho.

E se me Amo, Amo.

Como não fazer o Amor, ser e espalhar Abundância?

A polaridade ajuda-me a ver as partes, a juntá-las, incluí-las e tornar inteiro.


Que o teu caminho floresça.

Feliz primavera.

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