Recorda

Queria recordar-se. Tinha vislumbres. Tantos. E por vezes conseguia-os agarrar. E por uns tempos  vivia-os intensamente no seu dia a dia. Assim era ela, intensa.

Vivia na pele, os cheiros, os sabores, as sensações, a presença de estar na sua pele. Sabia-lhe bem. 

Mas a velha pele tornava a vir. Os hábitos gastos, as névoas turvas irrompiam-lhe pela casa dentro. Conheciam bem a casa, os recantos. Nem precisavam de bater à porta, quando tudo estava escancarado. 

Sabiam como tentar, como a provocar. Doces tentações. Perversas que a seduziam, de fininho. E enfeitiçada, deixava-se ir.

Respirava fundo.... e dizia-se. Foi só hoje. Só por hoje. Retomemos. E as tentações espreitavam-lhe ao virar da esquina. E depois... depois... caíam-lhe os anjos.

De pura luz que lhe acrescentavam um novo entendimento. Uma nova lufada. Sem culpas por se ter deixado ir pelas tentações.

E aí conseguia dar-se conta dos milagres. Os milagres que sempre florescem, como as sementes que despontam da terra. Sempre se oferecem para gerar vida. Assim são os sorrisos das gentes que inspiram e se dão, porque é essa a sua natureza. Não condenam, acolhem.

Faz toda a diferença. Já mora na mente tanto julgamento e condenação. Que precisamos de abraços, que nos acolham e incluam. 

Que sintamos que podemos ser no desacordo, no paradoxo, no contraditório, no controverso. Que temos permissão. Permissão para errar. Para cair no buraco as vezes necessárias e ainda assim continuar a receber a mão que nos agarra e puxa quando convictos estamos para querer fazer a jornada de encontro. E podemos sempre espalhar e renovar a vontade e aprender a falhar melhor.

E o trabalho de consciência vai-se fazendo. Vamos alimentando-nos melhor a todos os níveis. E vai-se ganhando nova respiração. Destravando, desbloqueando, abrindo caminho e deitando abaixo trilhos velhos. É preciso criar novos circuitos neurológicos. E a consistência faz-se também dos desvios, nas incoerências. É na revelação dos desvios, que se pode afinar o veículo.

E hoje, ela ouvia aquela voz doce... depois de tantos desvios, para lhe recordar o que já sabia, o que já tinha sentido na pele, mas que ainda não se tinha instalado. A consciência do alimento.

E a vontade encontrava lugar para continuar a praticar. O músculo continuava a precisar de ser exercitado. Não só de pão vive o homem, nem de corpo. E a mente demente tantas vezes a queria controlar e enganar e deixava-se trapacear pelas suas emoções. E a energia corrompia-se e o corpo é que paga... já dizia o Variações.


E no jogo do equilibrismo... continuava tanto por aprender. E as quedas mostravam-lhe o desequilíbrio e davam-lhe a orientação para onde seguir. É que o caos sempre impele para uma ordem.

E como qualquer dança... quer-se dançada.

É também esse o trabalho de recordar. Agora esconde... agora destapa e mostra.





Comentários