Nada a escapar ;)

O disfarce escondia-lhe a pele... mas não a impedia de sentir. E por mais que quisesse escapar, não havia esconderijo que a ocultasse.

As palavras sempre revelavam... e ela ocupada em esconder-se não prestava atenção à transparência. O corpo sempre denuncia.

E ela começara a apreciar a sua própria nudez. E observava-se com maior compaixão. Via na pele dos outros a sua própria pele. Fortalezas que olhadas, acolhidas, aceites começavam a dançar e revelar a sensibilidade. A presença sempre derrete corações. A presença leva calor e sempre abraça.

E nada fazes. Não há intenção. Apenas a de estar. E de lidar com o incómodo da rudeza, da frialdade e permitindo que suceda. E de coração aberto que penetre também nas feridas minhas.

Há sempre fortes levantados, proteções e vigias em alerta não vá vir para aí um disparo de qualquer lado. E ainda que se vá baixando a guarda, tantas guardas ainda andam por aí. Os olhares dos outros sempre me despem.

E quando dou por mim a defender-me, a argumentar lá me apanho na minha própria armadilha. De achar que estou a ser atacada, que e mais que. E quando me dou conta baixo a guarda. Há lugar e espaço para a diversidade e nada nem ninguém tem de concordar com o outro. Trata-se de abrir espaço dentro para receber o diferente. Para perdoar-me do que em mim julgo, critico e condeno. De acolher mais a divergência de partes que em mim habitam e considerá-las a todas, sem querer arrancar nada.

E quando olho para fora e me incomoda ainda o diferente de mim percebo o que ainda tenho de resolver, integrar. E respeitar o diferente não implica concordar, tomar para mim como certo, apenas honrar e dignificar o espaço de cada coisa. Ainda que não goste de favas não me incomoda que existam, nem quem goste delas... porque havia de incomodar o que não se enquadra na minha forma de estar?

E 2021 trouxe-lhe o tema da rejeição e dos limites. E o que se rejeita também é rejeitado. E quando não há limites há espaço para abusar e ser abusado. E fronteiras são necessárias para ajeitar e acomodar o que levamos dentro, reunir.

A poucos dias do fim, a reflexão fazia-a flectir sobre as memórias de um ano recorrido. Dignificar e honrar as experiências. As mais duras e difíceis e as mais bonitas, amorosas. E o recheado sempre traz de tudo. E a retrospetiva gostava de a fazer calmamente. Sentindo cada mês. Cada palavra. E percorrendo os registos, os eventos, os vídeos, os textos, o trabalho feito. Sempre lhe abria portas para uma nova continuação.

Desilusões, desapontamentos que lhe despertaram a raiva, a fuga, a compensação, o choro, a tristeza e também a firmeza de expressar. E de regressar a si mesma, e aprender e reaprender a sustentar-se nos seus pés. E voltar a olhar com novos olhos. A curar-se e a obedecer a si mesma. E aquele que  a desapontou passa a ser um mestre digno que a ensinou e a permitiu resgatar-se mais um pouco. 

E sabia-se real quando o abraço se movia em comoção e verdadeiro agradecimento por tamanha generosidade. E tudo levava o seu tempo. Não havia como saltar etapas, e passar por todos os estágios era essencial para sentir, e sentir-se. Afinal as dores, essas eram muito antigas.

Havia uma criança lá de trás que começava agora a ser vista, abraçada e aceite na sua totalidade. E isso requeria um ritmo próprio, tomar-se com tudo. Já não havia do que fugir, nem compensar. E para receber a vida plena tinha de começar por si. Receber-se plenamente, sem evitar livrar-se fosse do que fosse.

E cada vez havia menos do que escapar. E ainda que isso a pudesse por instantes deixá-la aflita. Era o melhor que lhe podia estar a acontecer. É que só desmoronando-se do seu castelo idealizado de "pessoa perfeita" é que poderia tornar-se real.


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