Ondas



Não fazia ondas... toda ela era uma onda, rebelde, solta, espontânea. No fluxo do sol, das águas, do vento. Efervescente, gelada, quente.

Às vezes queria-lhe soltar as rédeas, outras amarrar-lhe. Que isto andar por aí sem comando, de perna solta tem muito que se lhe diga.

E ela começara a escutar. O que lhe saía de dentro na sua voz e na voz dos outros. É que as bocas são grandes e têm tantos corpos que é preciso ter o ouvido desperto para se sintonizar com a diferentes ondas que o corpo lhe entoa.

Criativa sem dúvida... semeava-se em tantos lados, que tinha por aí tantas colheitas espalhadas. E nem sempre era fácil tomá-las como suas. Preferências ou conveniências. 

É que tomar o difícil tinha tantas vezes o travo amargo de quem se quer abandonar. E escutar é olhar. O intragável, o que se quer tapar e esconder, o que se quer excluir. Quero o bonito. O resto, o resto quero jogar fora... e de se possível nem reciclar para não correr o risco de que  possa regressar.

E sempre regressa. Regressa o que não se quer visto, o que resistimos para que possamos reconciliar e tomar como vida que em nós pulsa.

É que a morte também pulsa. E é preciso tomá-la como o presente precioso, como parte da parte que nos reúne e nos liga neste grande tecido que é a existência.

E na rebentação que explode, que fervilha vejo as partículas em câmara lenta que me tocam, que me molham, que acordam, que me gelam, que me sacodem. E há ondas bem grandes que se formam dentro do meu grande corpo. Ainda que faça sol e o calor me abrace. E ela achava que o tempo a convidava ao mergulho, já as ondas... diziam: atenta! "Faît attention. Arrêt" E também esses compassos de espera são movimento. É que a melodia vive dos espaços vazios, das intermitências que misturadas com as diversas tonalidades de som criam a vibração harmoniosa e síncrona. Ainda que no teu olhar possa parecer assimétrico. Há associação na dissonância. E metáfora no real. E a imaginação sempre vence. Já que a ilusão é um muro forrado a tijolos e cimento. E na leitura as palavras sempre fogem. Ficam as imagens que a tela constrói, ainda que não saibas pintar. Os melhores desenhos sempre foram desenhados pela mente sem que nunca tivesse pegado num pincel. E ainda não inventaram a impressora direta do livro de imagens que levo dentro.  Essas seriam as ilustrações que a minha criança gostaria de pintar.

Piu, piu... era a música que a memória buscava na juke box que levava dentro.  E por mais que cantarolasse e pedisse à senhora do youtube para a buscar, não chegava lá. Há músicas que nos acompanham e nós nem nos lembramos delas. E tocam sem letra e sem melodia. Não se querem encontradas. Para que no dia que deixes de procurar possas encontrar.

E vamos para a dança seguinte, para a próxima risada. E ela observava a rapidez com que um presente dava lugar a outro presente. Bem ditas as crianças presentes, que avançam. Avançam de um tema para o outro. O que passa, passa. Adiante. E tu lá atrás, perdeste-te e não sabes bem onde te deixaste. E em vez de te quereres trazer, perdes-te na trama de querer perceber onde é que te deixaste. Qual a data, o motivo, a justificação, e como reatar e ressignificar os lugares negros que te deixaram furad@. A ilusão sempre diz que só podes sair se entenderes, se resolveres. E no masoquismo de quer escaranfunchar e arrancar o cascarrão para confirmar que por baixo há ferida, voltas a pôr em carne viva, o que já estava quase sarado. E as impressões carregam-se da impregnação do controlo de querer perceber pela razão o que não precisa.

E a necessidade de precisar torna-te pedinte. Quando em ti mora a riqueza do tesouro que se quer acariciado e desfrutado. 

 As ondas sempre carregam a matéria viva que vibra. E desmonta, e explode e revela o que aí vai... o que lá vai.

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