A criança ferida


Se tinha de ser... é porque a verdade destrói. Havia mais por fazer. Só silêncio que emudece as palavras que teimam em não sair.

Para que servem as palavras... se elas não mudam a realidade? E assim a criança foi calando a expressão do seu sentir? Para quê? O incómodo de não se saber lidar com tamanha sensibilidade, revolta e questionamento... E ela só queria ser acolhida.

E observa o mundo das crianças... e o tamanho das revoltas, dos incómodos, das chamadas de atenção e revê-se, recorda-se. Também nela mora essa criança inquieta que amua, que se impõe, que desafia a autoridade, que se questiona e pede atenção.

Eu vejo-te. Digo a cada uma das crianças com quem me cruzo. E quando perdem, e quando vem a contrariedade, e quando não sou eu @ escolhid@, e quando não é à minha maneira. Reconheço os amuos, os acessos de fúria.

Admiro a sua pureza, porque expressam, metem cá fora o que sentem, sem filtros. Aí estão a desenvolver a parte límbica do cérebro para aprenderem a regular-se. E nós adultos... sentimos? 

Esquecemos de expressar e por isso pusemos de lado o sentir.  Viremos a página aos sentires obtusos, amarrotados, sebentos que vão embaciar a nossa imagem cá fora.

Com a criança recordo-me do genuíno. Da pureza de sentir. E de contactar também com essa parte minha. A criança obriga ao adulto a expressar-se, por provocação. Ela testa os seus limites, confronta-o para que ele possa aceder também ao sentir. É estar em contacto com as emoções fortes, com o imprevisível a todo o instante.

E apanho-me nas birras sofisticadas, com o toque subtil, quando surge a contrariedade. O impulso da reatividade que reclama a falta de atenção que ainda me esqueço de dar, os limites que precisam de ser reforçados e que dão o alerta quando são trespassados.

E o verdadeiro trabalho de encontro consigo mesmo dá-se no dia a dia. Escolha a escolha.  É aí que revelo como está a relação e intimidade. As resistências, como está o meu sim e o meu não. Os ainda nãos que me saem. 

Os venenos que ainda me ofereço como a melhor gratificação que consigo dar. Qual a consciência que tenho desses buracos e vazios. E de que lugar gestiono essa relação?

É que às vezes há venenos que assumem cura e medicina enquanto não se consegue de outra, e também isso é Amor.

Não há manual, nem fórmulas mágicas. Há coragem de se poder ir olhando melhor para si mesmo com lentes mais amorosas e acolhedoras. É que para integrar, primeiro há que incluir.

E adulta de hoje para se inteirar precisa incluir e cuidar da criança que leva dentro. E permitir a expressão da vulnerabilidade. Dar-lhe o direito de sentir.... sem as frases castradoras "pronto já chega", "já passou", "não se pode dizer nada, chora logo", "vá se te acalmares levas o gelado".

É fácil gerir as emoções de uma criança? Não. Lidar com a dor do outro. Não. E porquê?

Porque não fomos ensinados a lidar com as nossas. E deixar que saia, que leve o tempo necessário e acompanhar o processo, fazer-se presente, disponível e na escuta.

E agora como é que o adulto pode lidar com as suas emoções???  Pode ser assustador lidar com a sua própria dor.  E o que se faz? Vamos lá mascarar, tomar pílulas mágicas a fazer de passa, vamos tapar o sintoma. E por aí seguimos medicados, robots autómatas.

Acordemos pois a criança ferida. É hora de cuidá-la. De sair da orfandade e de andar por aí buscando pais adoptivos em relações tóxicas. 

Decreto-me mãe e pai da criança que levo dentro e habita este corpo de adulta.



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