O vazio


Bateu à porta. Respirou fundo.

Decidiu que era momento de entrar. Não sabia muito para o que ia, mas no fundo de si sabia que queria atravessar. Passar por esse portal mágico que a conduziria ao mistério de não saber.

E depois?! Mantivera-se ocupada, encontrando sempre o que fazer para evitar-se. Confrontar-se com esse espaço abstracto do nada, sem correr para o preencher. Esperar que ele pudesse comunicar, momento a momento. Aguardar o movimento na quietude.

O que se move. O veículo sempre se move. E permitir que o desassossego venha, a ferida, a dor e deixar que ela se destape, se mova, sem que me apresse nos pensos rápidos para me livrar dela.

E se me perder de mim?

E se me encontrar? E se for tudo a mesma coisa, visto apenas com novas lentes?

Quem tem medo de se perder e de ser destruído e de não controlar, senão as estruturas compactas do saber, do ego, da "proteção", das capas que quero criar para garantir que sobrevivo e "escapo" à morte. 

O veículo sempre se quer preservar... Há a memória da eternidade, contudo a identificação com as formas cria o apego do querer ficar e pertencer.

E sempre que acedia à recordação de onde vinha reconhecia que era completa. A abertura, reconhecia a grande onda circulando em si, através de si, a unidade na tribo que sempre se junta para acordar o amor e a sanAção. Inteirava-se e o fragmentado dissolvia-se por momentos. Até que o automatismo da mente voltava a repetir o padrão.... será que sou capaz, que sei o suficiente, que há os recursos?

E aí voltava a perder-se de si. O medo da perda vem da memória do que faltou, da perda, da dor que se sentiu e ficou gravada na pele. E a ferida sempre se abre quando se toca. E as lágrimas caem quando a emoção se toca.

E também quando se recorda, a sensibilidade desse vazio preenchido de si. De saber tão bem estar nesse nada que nada precisa, porque em casa está e o fluxo tudo traz para o movimento seguinte.

E começava a confiar um pouco mais. A assumir... olha vamos. 

"Estás preparada?" E nunca responder a essa pergunta lhe soube tão bem. "Não". Uma resposta cheia de verdade.

Ela nunca se sentia preparada. E ainda assim ia. Caminhando de mãos dadas com o medo, a insegurança, o não saber e todas as paranóias que momento a momento a mente também lhe ia criando, e respirando, acalmando-se. Ficando aí... sem fugir à palpitação do coração agitado, do tremer de mãos e da respiração mais acelerada. Do calor que lhe enchia todo o corpo... até pouco a pouco vir a completa serenidade de aceitar o lugar ocupado.

Nada a provar e tudo é uma prova de sabores e sensações que se apresenta como uma feira de variedades em vários tons, ritmos e volume.

E ia-se provando cada vez com gosto por todos os sabores que ia descobrindo de si. E ia ocupando melhor esses espaços vazios de movimentos interrompidos que queria criar de si mesma com compensações e distrações. E ia sentindo-se e expressando-se melhor em si.

E lá fora quando tinha de percorrer um caminho novo ainda se assustava... vinha o primeiro terror  de um disco à muito gravado " ai que me vou perder, tenho dificuldade na orientação. e se me perco, ai que não sei o caminho de volta. quem me salva?" 

E nada melhor que ir concretizando os medos e ir deixando cair também as ilusões. Como se pode perder em caminhos que não se conhece? Há novos caminhos por percorrer e descobrir. 

Acompanhando-me vamos sempre juntas. Ainda que haja lugares escuros por iluminar e abraçar. Ainda que possa distrair-me e voltar a perder-me. Ainda que a vida sempre me recorde da sua impermanência, que as formas sempre se vão. As pessoas, os momentos, os ciclos e eu possa entregar o meu coração e permitir-me viver com tudo, confiando, abrindo e aceitando.

Mais uma porta se abre... quando mais uma capa se abranda para render e humildar mais um pouco.


 

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