Na outra margem

 



Há limites que se querem trespassados. Imagens por derrubar e ideias que querem cair por terra.

Tanto é o tempo que se contam narrativas como novelos que se tecem em enleios e teias tão bem compostas. Sintonizadas e sincronizadas. Tanto é o tempo que se esqueceu que o tempo continuou a contar. E depois vieram outros e mais outros até que chegou a tua vez. E na vez de continuar tudo continua na narrativa de "era uma vez.... "sem se saber qual vez nem conseguir situar o tempo remoto a que se situa o pretérito imperfeito do verbo ser. Esse ser que nunca se repete, repetindo inúmeras vezes nas inúmeras peles que transporta numa só pele. Camaleona de tantas vestes de eras infindáveis. E se a cor é o disfarce como o camaleão que se camufla no ambiente para sobreviver. Também ela camaleona de tantas culturas, gerações gravadas no ADN, na morfogenética.

E entre véus fica o espaço do aparente presente que marca o instante marcado pelo compasso do coração que pulsa e do pulmão que respira. E aquela que observa já não está num lado nem de outro. E na travessia procura-se a outra margem. Só para que sublinhe o movimento de um ponto para outro. E a margem subentende que há terra firme, que há um rio, um abismo por atravessar.

E se a outra margem for outro céu, outro horizonte, outro plano? Mais um plano. A claridade sobre algo que não estava todavia consciente, visível.

E vêm sempre as palavras na tentativa de traduzir os estados, as transições. E a vida a marcar os ciclos, as mortes, os encerramentos, os fins, as alterações através dos eventos, das circunstâncias. E é sempre a roda a girar a recordar o movimento. E se a estrutura mecânica e automática dos dias, das rotinas  te vêm assinalar a monotonia, a cadência de ritmos monocórdicos, há vidas com muita salsa e variedade. Que são flores abertas que florescem, que morrem, que renascem, que mudam de cores e formas, que levam a adrenalina do improviso e do mistério. Que pedem baile e se abrem à exploração do sentir.

E para que servem as emoções senão para ser sentidas no vibrante que é a sua vibração. E dosear intensidades, criar melodias e romper com a rotina do automatismo. E criar dissonância no estanque,  para que reverbere e ecoe dança e o estático possa mexer-se.

E assim todas as margens se comunicam. E se te disseram "não levantes ondas", hoje a ordem é levanta-te onda para que eu possa passar, ou melhor, antes Moisés levantou a onda para o povo passar. E hoje é que se levantem as ondas para podermos surfar. E água símbolo de vida, de movimento, de criação é instrumento de parábolas, de narrativas . E há que atravessar o tumulto, as ondas, as águas. 

E o desconforto procura lugar e espaço para se manifestar para que possa criar ondas e nessas ondas voltar a provocar movimento no que ficou estático. Quantos mares foram atravessados antes dela?

O avô materno contrabandista atravessava a outra margem a nado. As fronteiras tantas vezes demarcadas por rios. E faz-se o que é preciso para se manter a vida. E se não ensinas a pescar vendes o peixe no mercado. Importa que o fluxo das águas continuem a correr.
 
E em qualquer das linhas, as traduções sempre se fazem. As teias sempre se continuam a tecer silenciosa e tacitamente.

E o avô paterno transporta a água. E do salgado se passa para o doce. E dai-lhes de beber, de terra em terra, lés a lés, até que os pés te recordem novamente o caminho de regresso a casa, para de vez em quando ires descansar e voltares a oferecer o que de beber. 

E a força de vida sempre se propaga. E arranja formas tão criativas de se espalhar e continuar a criar e procriar. Venham os filhos, 13. Venham os projetos, os feitos, as criações que se doam e partilham para que outros possam continuar. E assim são os cozinhados de mulheres que nunca se ligaram fisicamente, mas que por cortesia cumpriam o protocolo. E ainda assim partilhavam tanto mais a transformar alimentos em pratos deliciosos para a comunidade. E entre tachos contagiavam com o seu talento e a vida continuava-se criando e tecendo através das suas mãos e sentidos.

Como seria estar na outra margem com os talentos e habilidades de quem veio antes. Os recursos sempre se alquimizam e os tecidos tecidos dão lugar a tantas obras de arte com tantos ângulos.

E como será estar na outra margem com a obra exposta de tudo o que compõe, o mosaico ambulante de telas com rios, águas, tecedoras, vendedores de águas, de peixe, cozinheiras, salgadeiras de peixe, parideiras e parteiras. E tantas árvores, campo e natureza que se falasse a linguagem dos homens teria tantas histórias para contar e palavras para escrever. Seríamos nós a tv, o palco e a natureza os espectadores de tamanhas artimanhas e peripécias atravessadas ao longo dos tempos pelos humanos passantes.

E se a outra margem falasse  de mim corpo e alma, ou só da alma na sua essência?E de quantas vidas e planos e versos e pluriversos e margens estará este ser a viver em simultâneo, direto ou diferido. Onde começa e onde acaba?


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