O que fazes com o que levas dentro?


Flashbacks. 

Os fios que conectam às memórias do que foi e como foi, ou melhor, à perceção que tiveste acerca da tua biografia.

Os momentos em que parece que tudo falhou. A violência, os gritos, a discussão. A voz que cala, que não pode expressar. A doença que grita o que a emoção tem de calar para não incomodar. 

As sensações de desamparo, de vergonha alheia... "se me vires lá fora não me fales, finge que não me conheces". E também a vergonha própria da imagem que se tem, se passa, e será interessante o que tenho para dizer, e esconder a vulnerabilidade para não ser fraca. E a armadura da forte vai-se construindo para a sobrevivência. A vergonha de onde se vem. A comparação. Os outros são melhores. Não existe nada tão problemático e catastrófico como na minha família. Não quero que tenham pena, não quer ser olhada  como a diferente, a inferior.

E vai-se fazendo de conta... fechando os olhos para não ver. E os monstros vão-se criando dentro da casa que se habita. 

Carrega-se a culpa por sentir o que se sente, como incorreto. Para quê temer o julgamento dos outros lá fora, se dentro mora uma juíza tremenda que passa as sentenças, que se amarra  dentro das definições do certo e errado. E aquilo que se critica lá fora, os outros dogmáticos, rígidos e que irrita são os espelhos fumados do que se faz dentro.

E o primeiro passo é estabelecer a relação. Estou cá para mim. Desistir de fugir, de escapar, de me ocupar com a vida lá fora.

Quando aponto o dedo lá fora aos outros, às circunstâncias estão 4 apontados para mim... e assim vou-me distraindo, queixando-me, reclamando. Quantas más pessoas existem lá fora, com mau feitio, abusadoras, falsas e tudo e tudo. Sim, porque eu sou a boazinha, a mártir, a generosa e tudo de bom.

Claro, claro. Quanta arrogância?

Que partes de mim se revelam com as experiências que atraio para o meu campo? Do que preciso de me dar conta?

Trazer para dentro exige trabalho. Responsabilizar-se por tudo o que acontece. Afinal sou a criadora da minha experiência. E tudo serve para crescer.

A família disfuncional, a violência, a vergonha, a culpa, o abandono. Tudo me grita para que acorde e possa dar-me conta de como é a relação de exigência, insuficiência e do quanto entrego o meu poder aos outros para que possa pertencer, agradando.

Vou-me dando conta, vou sendo mais amável, vou-me acompanhando. Mas também me apanho nas sabotagens, a escorregar, a distrair-me. E em vez de me castigar e dar porrada por me falhar ainda, vou pondo doçura. E não é que essa doçura real vai atenuando a vontade de dar açúcar ao corpo?! Interessantes descobertas.

Não se trata de ser perfeita, trata-se de ser amável e mais presente em cada passo que dou.

Sem vergonhas, com licenças, culpas, punições por ser o que sou. É que a história de onde vimos vem mostrar a matriz que precisa ser curada, amada e atravessada para outro estágio de consciência.

Também sou as experiências que tive e o que escolho momento a momento fazer com o que recebi. Como escolho responder, baixar a guarda, dar-me e confiar.

É que sempre vai haver material por explorar para dar-me conta do que projeto, do que anda aqui inconsciente, quais os ardores. E isso é para crescer.

Lá fora a vida sempre continuará a enviar os mensageiros para iluminar os pontos cegos. E por vezes não se recebe assim com tanto amor os cabrões e cabronas que nos vêm tocar nas feridas e nas dores. E precisamos de AtivaDores para aceder ao que está armadilhado e preso e nos trava o fluxo de receber a vida tal como é.

Pôr compaixão em nós, de que respondemos sempre de acordo com o que sabemos, aceitar o que vem, o que sai é fazer o amor. TU és a maior cabrona e cabrão contigo quando te castigas e exiges.

Falo da minha história que não será muito diferente da tua. Todos temos as nossas artroses. E faço-o por egoísmo e amor de aceder mais fundo e reconciliar-me com esta aprendiz de humana. Quando permito dar-me voz, ilumino o que vai dentro, acolho mais um pouco, dou força à minha raiz, honro e dignifico. Acedo a mais partes escondidas, a outras camadas subtis. É que a percepção tem infinitos planos, ângulos e só quando nos permitimos observar sem concluir nem definir vamos permitindo que as revelações se dêem.

 E tenho sempre a oportunidade de me reconstruir com as realidades que levo dentro.


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