Deixar sair a imperfeita




Tinha-a amarrada à gaiola da perfeição. Do que a mente tinha construído como modelo, idealização, perfeição do que seria ser do bem, a boa menina. Sem nódoas e valha-me o Cristo se viesse alguma parte amarrotada da roupa. Imaculada. Talvez fosse a imagem dos anjos e no fundo de si recordasse a parte angelical. A saudade de estar unida à parte de si divina, inteira custava-lhe a pôr os pés no chão e permitir-se jogar neste campo dual. E estar encarnada, era assumir a matéria, honrar todas as partes. Experimentar, sentir, retirar rótulos. E quanto mais negava, mais se espalhava ao comprido e se enleava na teia da dualidade. Nada a que fugir, aliás como poderia fugir se se tinha amarrado muito bem amarrada no protótipo construído algures na mente demente que querer controlar seja o que for.

E quebra-se a ilusão da perfeita e a imperfeita ganha espaço para se revelar. E se é para sentir, sente-se tudo e a pele desnuda-se. 

Tantas identificações com as formas, projeções e expetativas. E vir para o presente, para o momento e ficar aí. Atravessar o espelhismo que tantas figuras coloca, deixar cair a névoa e libertar-se das ideias e formulações.

Já sabia umas coisas. E como praticar melhor e tornar sabedoria senão no confronto da pele. Só desse modo se pode dar conta e ginasticar.

Retirar importância, aliviar as cordas, desatar os nós, abrir as gaiolas e deixar que a vida aconteça. Dei por mim deliciada a assistir às viagens pelo mundo de um mochileiro que seguia modesto, dormindo na rua, outras em hospedagens baratas, à boleia, entrando nas casas dos locais, partilhando comida e bebida estando na relação humana em todos os níveis, aberto à surpresa. Ora sentado na bilha de gás de uma mota, ora num camião. E realmente estar disponível é dizer sim ao que se apresenta. Baixar a guarda para os achismos. O que eu acho que deveria ser, o que mereço... isso é alimento da mente que Quer e sempre Deseja. E assim venha o que vier se não estiver etiquetado como bom, vou rejeitar e maldizer.

E se nada for bom ou mau, apenas a vida a manifestar-se,  será que posso receber melhor? 

Assim se vai desmontando gaiolas, modelos, protótipos, prefixos e sufixos.

E se a perfeição for Ser tudo o que se revela e acolher todas as Partes como nossas? Aceitar a unicidade, a individualidade sem comparações, nem imitações?

E se deixares de te acusar. E se puderes tomar-te por inteiro sem te desculpares e atirares para fora o que achas que não é teu? Como se pudesse alguma coisa estar fora de ti.

Trazer para dentro a perfeita. Assumir que tudo é perfeito. Incluir, receber... nada a tapar ou excluir. E para isso não preciso gritar aos sete ventos, declarar-me ou assumir o que vai dentro. Não é isso que me vai certificar que já recebo a minha imperfeição. É um trabalho silencioso que vai sendo tecido dentro, remexendo, desobstruindo, confrontando, limpando e pouco a pouco Regressar e Remembrar.

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